MENU

19/06/2021 às 00h00min - Atualizada em 19/06/2021 às 00h00min

Lembrando Lima Barreto, num dia de domingo

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

 

Era um domingo, não muito diferente de outro qualquer. Pelo menos ao anterior, em que, com pequenas mudanças, quase imperceptíveis, vive-se a rotina. Como diria Lima Barreto: o sol coava-se com dificuldade por entre grossos novelos de nuvens erradias. Pois é: degluti saborosamente essa metáfora num dos seus romances. Li e anotei. Gosto pacas – expressão usada em anos atrás – desse escritor. Excelente contista e um dos grandes estetas do nosso romance. Deixou-nos frases revestidas de uma força poética, que vale a pena transcrever: ...e o crepúsculo cobria as cousas com uma capa de melancolia por assim dizer tangível. Eta, Afonso Henriques de Lima Barreto! E só viveste 41 anos. Mas ficaste em definitivo para a história de nossa arte literária. Não sou de invejar, mas, confesso, com algum laivo de alegria, te invejo. Isaías é um dos seus personagens de Recordações do Escrivão (Isaías) Caminha. Uma imensidão de obra literária, comparável ao Bruxo do Cosme Velho. Nesse romance, Lima Barreto, já naqueles tempos idos e vividos, denunciava o grave problema racial que nos atormenta até os nossos conturbados dias.

A passagem da narrativa é a seguinte: Isaías resolve tomar novos ares e viajar para o Rio. Depois de algumas tratativas, arruma as suas coisas, com a providencial ajuda da mãe, e faz a viagem de trem. Vai com a ideia fixa de ser “doutor”. Trabalhar, estudar e realizar seus sonhos de ser chamado de “doutor”. Inicia a viagem. A distância é longa e a acomodação não é das mais confortáveis. Em alguma estação, o trem para. Isaías, com fome, se dirige a um balcão onde havia venda de café e bolos. Outros passageiros também lá se encontravam. Serviu-se e pagou. O troco demorou. Reclamou. E caixeiro não gostou. Deu uma reprimenda daquelas em Isaías. No exato momento, chegou um rapazola alourado, reclamou o troco e foi de imediato atendido. Isaías sai indignado e rumina para si mesmo: Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa...

De Isaías, personagem título do romance de Lima Barreto, para cá, nada mudou. A pessoa negra, parda, crioula, ou com alguma pigmentação que a distinga da burguesia branca, como disse o vice-presidente Hamilton Mourão, e as nossas forças de (in)segurança não estão dando trégua: É tudo bandido! O mais recente ato de racismo (tenho dúvida se vai ficar apenas no “recente”) foi a agressão de um negro numa loja do Shopping Pantanal, em Cuiabá.

Mas, eu dizia: era um dia de domingo. Dia de sair do marasmo. Buscar o sol, a chuva, o mar, os amigos que se encontram guardados no recôndito dos nossos mais sensíveis afetos. Tudo isso a reclamar uma conversa infinda.

E, nesse domingo, saí para cumprir a rotina do tradicional encontro. O trânsito, vencidos os primeiros tradicionais buracos, não estava tão intransitável. Para estacionar, tive um desagradável pressentimento, de encontrar alguma dificuldade. Enfim, pandemia não assusta os que vivem a liberdade com todos os excessos da liberdade. Além do mais, as nossas cidades estão assim, assim. Têm mais carros que gente. Não sou vidente, mas tou prevendo, para não muito distante, que teremos uma greve dos carros, por falta de estacionamento. Se o trânsito, mais das vezes, é caótico, estacionar é um drama nosso de todos os dias. E em alguns lugares, tira os olhos da cara. Ah!, me vem o sonho impossível, ainda assim mesmo sonhado, de se ter um transporte público decente. Aquele que nos dê conforto, sem o resquício do sofrimento de Isaías.

Porém a tragédia às vezes aparece do nada. Pela ampla avenida, por onde trafegava, um corpo estendido no chão. A curiosidade dos que passavam não deixavam aquela lúgubre cena com a sua dor. Abraçada ao corpo, a mulher chorava o desespero da tragédia. As lágrimas da dor se misturavam ao sangue que ainda brotava daquele corpo inerte, aconchegado nos seus braços. Em volta, pressentia-se que as providências estavam sendo tomadas. O local fora isolado. Um policial em postura de comando, e, apitando freneticamente, desviava os veículos, facilitando o curso do tráfego. Alguém perguntava para alguém alguma coisa. A mulher sofrida, com o cuidado do carinho, deposita o corpo numa padiola, que viera de uma ambulância, que acabara de chegar, cintilando suas luzes vermelhas em advertência. Um homem examina o anônimo corpo. Alguém toma notas em uma caderneta. Fotografias são tiradas numa sequência alucinante de flashes. Sentada, no outro lado da avenida, via-se uma pessoa de ombros arqueados, com a cabeça sobre os joelhos, demonstrando uma tristeza insondável. Parecia profunda e verdadeiramente sozinha.

Nesse domingo, a tristeza da fatalidade fora reforçada pela dor da morte, essa tragédia inevitável. Em volta dela, compondo a cena, a volúpia sádica dos curiosos. Aos poucos, o trânsito foi se abrindo, os carros retomaram a velocidade costumeira, e a vida continuou a ser vivida na sua trágica normalidade. E a mulher, ainda soluçando, era a outra verdade que ficara daquela tragédia. Saía dali caminhando na solidão de suas lágrimas.

* Membro da AML e AIL
Link
Tags »
Leia Também »
Comentários »