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29/05/2021 às 00h00min - Atualizada em 29/05/2021 às 00h00min

JOÃO GUEGUÉ

Série: personagens – vida real (V)

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

  
Não sei, não tenho a menor ideia de onde veio esse cristão, nem de como é que ele surgiu por ali. Sei que “quando me entendi por gente” já estava por ali. De resto não sei mais de nada, não sei onde morava, com quem morava, como morava. Era, então, para mim – revejo hoje - um estranho de quem nunca tive informações de sua origem ou descendência. Sei que vivia por lá, andava por lá. Estudávamos então as primeiras letras e os primeiros livros na Escola do Sertão e, como lá na escola também era um pequeno comércio (ou BARRACA, como se dizia) é daí que João GUEGUÉ aparecia por lá. Tenho minhas dúvidas se na barraca servia uma pinga. Pinga porque GUEGUÉ era um “fino bom de grogue”.

Tenho por impressão de que ele morou primeiro em outras terras daquelas bandas e só depois veio a morar nas terras dos Teixeira – basicamente dentro do mato. Era assim, havia (e ainda há) uma linha divisória que ali chama-se “rumo” que separa as terras dos Teixeira às terras dos herdeiros de Lourenço Estrela. Esse “rumo” é basicamente uma passagem precária, uma vereda de mato, por onde não há trânsito, nem movimento senão em raríssimas ocasiões. Era servido por esse “rumo”, à beira do qual morava JOÃO GUEGUÉ e sua entidade familiar, composta de filhos e netas.

Estive em sua casa, ao que me lembro uma vez acompanhado de meu pai, este que ali for rezar uma via-sacra. E,  de longínqua lembrança, talvez mais uma vez. Talvez. Posso lembrar que Guegué morava num precário casebre de palha, à beira da sofrida passagem de mato, sendo seu casebre cercado de mato por todos os lados. Não havia terreiro nem à frente, nem ao lado, nem aos fundos. E uma única criação de terreiro ou um cavalo também não vi. Porque não havia. Enfim JOÃO GUEGUÉ não possuía nada, vezes nada, absolutamente nada. Quer dizer possuía um cacete com o que andava para cima e para baixo. E era só isso

Guegué era um homem corpulento, magro de cabelos espessos carapinhas e barbas brancas, também carapinhas. Pequena  vara nas mãos. O conjunto nos dava medo e nos retrancávamos em trata-lo pelo apelido. Ah isso não! Isso nunca! Ocorreu que de uma certa passagem, alguém lhe tomou a bênção: “Bênça meu tio João Guegué” – Deus te abençoe mas não precisa repinicar, disse ele. A frase de resposta ficou para o resto da vida, daquela gente.

JOÃO GUGUÉ é aqui o nosso personagem, não só pelo seu pauperismo, mas pelos grogues de cachaça que compunham a sua rotina. Bêbado entregava-se à própria sorte e deitava-se ao chão. Também não aceitava o apelido, sentia-se ofendido.  Guegué andava indefectivelmente com um cacete às mãos, objeto que se lhe servia de anteparo, bem como de defesa em casa de ameaça de algum cachorro, quando da passagem pelas casas, possuído pelos grogues de cachaça.

João Guegué viveu numa época em que não havia aposentadoria rural  -  benefício esse que, portanto, não conheceu. Como igualmente outras mesuras do Governo também não conheceu. Também não pedia esmolas naquele território de tantas pobrezas em que tantos deles eram tão pobres ou mais quanto  os demais. Ninguém, absolutamente ninguém ali pedia esmolas, ainda que na crua pobreza, tal o sentimento de altivez e até de vergonha, das pessoas. Mas, se Guegué viesse a pedir ele até que faria jus. “E ninguém haveria de reparar”.

Hoje – setenta anos depois -  eu lembro desse João Guegué – “meu tio João” -  como ele preferia ser chamado. Cobrava, até. E tudo o que dele imagino é que ele, como quase ninguém experimentou a fome, a pobreza, as dificuldades, o abandono social e... os seus homéricos grogues  que o deixavam ora “tumbando” pelos caminhos, ora deitado ao chão, para se segurar.  E faço dessas lembranças, as “puídas” e veredas que traçam e compõem os... CAMINHOS POR ONDE ANDEI.

 * Viegas questiona o social
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