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01/05/2021 às 00h00min - Atualizada em 01/05/2021 às 00h00min

Carolina Maria de Jesus: o Quarto de Despejo

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Faz tempo. Quando tive, por curiosidade, contato com a narrativa memorialista de Carolina Maria de Jesus: Quanto de Despejo, diário de uma favelada. Dou um passeio pelos escaninhos do tempo, como se estivesse caminhando por uma estreita rua de pouca iluminação e sombras opacas. Com alguns reflexos de luz elétrica ou de lamparina, saindo das frestas das janelas entreabertas. Vasculho a memória desse tempo e tento extrair as reminiscências que estão encravadas e resistindo a vir até a mim. Mas... foi assim. Lendo em alguma revista, tomei conhecimento do livro de Carolina Maria de Jesus, com referências a sua pessoa, cuja publicação decorrera de um trabalho do jornalista Audálio Dantas. Falava-se então no romance Quarto de Despejo. Consegui adquiri-lo no formato de livro de bolso. E li, de uma sentada. Fiquei então sabendo que autora era uma favelada e negra. A mim, ainda bem jovem, estudante e gráfico, sendo linotipista, portanto habituado leitor, não me despertava grande interesse essa parte da biografia da autora de Quarto de Despejo. Interessava-me saber o que significavam os sentimentos expressos naquele diário que o lera, motivado pelo inusitado da notícia e do que estava descrito, cotidianamente, por aquela escritora.

É verdade. Faz tempo. Mas, de lá pra cá, o tempo passou. Porém nem tanto. O passado se faz presente, até porque o passado nunca passa. Está insistentemente presente em nossas nostalgias, ou como saudade de ter sido feliz, ou como angústia de não ter aproveitado a felicidade. Esse é o drama nosso de cada dia: vencer as reminiscências do passado, buscando a felicidade no presente.

Tendo Quarto de Despejo sido publicado em edição comemorativa e não sabendo onde mais se encontra o meu velho livro de bolso, recentemente fiz uma releitura de algumas passagens numa nova edição. Como diz Audálio Dantas no prefácio, “Quarto de Despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando”.  Com razão. No dia 15 de julho de 1955, Carolina de Jesus registra, como uma espécie de crônica diária que dá início a outras crônicas, o se segue: “Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão.” E prossegue Carolina de Jesus relatando diariamente a sua relação inamistosa com a vida, da qual fazem os personagens do seu cotidiano: “Hoje a Leila está embriagada. E eu fico pensando como é que uma mulher que tem duas filhas em idade tenra pode embriagar-se até ficar inconveniente. Dois homens vieram trazê-la nos braços. E se ela rolar na cama e esmagar a recem nascida? ...O que eu acho interessante é quando alguem entra num bar ou emporio logo aparece um que oferece pinga. Porque não oferece um quilo de arroz, feijão, doce etc.?”

Desse realismo vívido, tem-se uma espécie de crônica de a vida como ela é, na feliz concepção de Nelson Rodrigues, também cronista das tragédias suburbanas. Quarto de Despejo, obra controvertida de Carolina de Jesus, foi lançado ao público em agosto de 1969, pela Livraria Francisco Alves Editora. Na ditadura de 1964, chegou a ser apreendido por ser considerado subversivo. O que não é nenhuma novidade, já que Tortura de amor, música de Waldick Soriano, foi censurada, pelo fato de ter no seu título a palavra “tortura”. Vim a saber disso em recente documentário do canal Curta!

No lançamento, os dez mil exemplares da primeira edição foram vendidos numa semana. O livro foi traduzido para treze idiomas, vendendo mais de um milhão de exemplares. E admirado pelo escritor Alberto Moravia, que prefaciou a edição italiana. Mas foi alvo de contundentes ataques feitos pelo crítico Wilson Martins, que contestou a autoria de Carolina de Jesus e, antes de adotar essa posição eufêmica, declarou que o livro era um embuste. Em defesa da escritora, o poeta Manuel Bandeira, citado no prefácio da nova edição.

Quarto de Despejo para mim é um livro de crônicas do cotidiano, com forte força poética, pois elaborado numa linguagem própria do ambiente onde os fatos são narrados e onde os personagens vivem as suas alegrias e tristezas. O tempo de vida da obra está a dizer que é literatura. Se é boa ou não, depende do sentido que se possa extrair do seu conteúdo e da escrita. Carolina de Jesus veio ao mundo literário, não pela porta da frente, mas pelos fundos de um barraco de favela. Da sua narrativa realista, todos os dramas ali vividos.

Em outro livro, de sua autoria, Clíris: poemas escolhidos, de Carolina, há esse poema Acende o fogo: Acende o fogo / Atiça o fogo / Aviva o fogo, Zé / Não deixa o fogo apagar / Mané tá lá na lavoura / Precisa de almoçar / Mané sai de madrugada / Sai antes do sol nascer / Ele não deixa faltar / Comida pra eu comer.”  Como se percebe, a poética de Carolina de Jesus é de humanismo telúrico, não tendo perdido a atualidade. São os dramas e tragédias de todos os tempos.

* Membro da AML e AIL
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