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17/04/2021 às 00h00min - Atualizada em 17/04/2021 às 00h00min

A nova dimensão da liberdade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


 
Ao longe, sem esboçar qualquer ar de enfado ante o inusitado, acompanhei algumas manifestações em prol da liberdade (religiosa), que reuniram gregos e troianos, entre os quais empedernidos crentes, até mesmo os adoradores de ídolos, como são intitulados os católicos, que têm as suas preferências religiosas mais diversificadas, ateus, que não perdem a oportunidade de se fazerem presentes, e os agnósticos, que ficam entre a cruz e a espada. Bem, costumam vituperar, eu não creio, mas... depende... Essas manifestações, pela liberdade, amplamente divulgadas pelas mídias, pediam, paradoxalmente, a intervenção militar, mais precisamente, e deve ser dito, o advento, quem sabe através de um plebiscito, da ditadura militar. Ideia não tão inusitada, pois a história da nossa pátria amada, mesmo antes da proclamação da nossa malfadada República, é contaminada pelo vírus de sucessivos golpes. Lembrem-se do marechal Deodoro, inarredável monarquista, que aceitou, a convite da “elite”, inconformada com a libertação do cativeiro da escravidão, e tendo a participação ativa de Benjamin Constant, engalanou-se, montou no seu garboso cavalo e destituiu o gabinete imperial. E assim estava proclamada a República. Dizem os historiadores, menos comprometidos com esses ufanismos patrióticos, que o povo ficou abismado, olhando tudo aquilo bestializado, sem nada entender.

O golpe de 64, estribado (um pouco equíneo, não é?) nessa eterna história da carochinha de comunismo, foi outra farsa, de efeitos mais devastadores. Se o presidente Jango tivesse esboçado uma mera resistência, como fez Brizola, no Rio Grande do Sul, quando da renúncia de Jânio Quadros, o Brasil seria outro, sem qualquer resquício de comunismo, pois essa justificativa decorre do oportunismo de nossa elite, que se aproveita do despreparo cultural-político de grande parte do nosso povo, que continua carente de uma educação séria e comprometida em transformar a nossa realidade de colonizado.

A ditadura de 64 foi, enquanto pôde, apesar da resistência dos intelectuais e artistas, uma permanente e insensata agressão aos que não eram submissos, como os artistas da nossa música popular (Chico, Caetano, Gil, Nara Leão e tantos e tantos outros), que eram atormentados pela censura, perpetrada por agentes do governo, que sequer tinham lido A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo e transformavam a arte em trevas refletidas das suas mentes obscuras do autoritarismo insensato. Ainda não sei como as chacretes sobreviveram. Talvez porque o seu principal papel era não falar, mas balançar pernas e braços de um lado para o outro. Meras inocentes úteis, para dizer que o rebanho estava bem comportado.

Mas a insensatez desses atuais movimentos de defesa da família e da liberdade religiosa não difere daqueles que, lá atrás, contribuíram para fomentar a ditadura de 64. Têm uma finalidade cruel para a cidadania que apóia o governo do capitão, em que pesem as quase quatrocentos mil mortes por covid, e outras diabruras incompatíveis por quem exerce uma presidência da Republica, no uso de uma linguagem presidencial bem moderninha – como, ao se referir ao ministro do STF Alexandre de Moraes, o fez como um bêbado de botequim: “Não teremos outro dia como ontem, chega. Acabou, porra.” -, além dos insultos proferidos a quem ouse o contrariar nos seus momentos de convescote, em contato permanente com os seus aficionados seguidores.

Essa – dizem os entendidos nas coisas da vida – é a nova política. Luta-se pela liberdade e, ao mesmo tempo, clama-se pelo autoritarismo militar. Ou seja: a insensatez chega ao máximo da burrice, ainda que projetada pelo fundamentalismo religioso, ou não religioso, de puro oportunismo ateísta, para essas figuras, dotadas de um civismo grotesco, ao acender uma vela pra Deus e outra pro diabo. Acasalam-se, sob a bandeira da ignorância, a luz (representada pela liberdade) e as trevas (pela intervenção militar). Como conciliar essas contradições, nem Sócrates, se ressuscitasse, conseguiria, ainda que utilizasse todos os seus métodos filosóficos que o fizerem imortal para o mundo das ideias.

A construção da ignorância não é estática. É um processo, que vai atraindo os seus adeptos. A verdade, embora não seja, passa a ser, de forma absoluta. Assim, por força da insensatez e de uma crença contra todos os estudos científicos, quando ainda o mundo se comunicava por caravelas e estava sendo, aos poucos, descoberto, a terra é plana. Nesse contexto de construção das ignorâncias, a liberdade só se efetiva com a intervenção militar. Um dos corifeus desse cenário de deslavada idiotice foi o inefável e notório procurador Deltan Dellagnol, ao afirmar do alto do seu autoritarismo: “A questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é o político.” Como se vê, a ignorância é hoje o valor mais alto que se levanta.
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