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27/02/2021 às 00h00min - Atualizada em 27/02/2021 às 00h00min

​Em momentos de injustiça, a luta pela justiça

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Às vezes, andando por aí, na incansável busca pela felicidade, me perguntam, num tom de curiosidade inútil, quem eu sou. Coça os ralos cabelos que ainda me restam e fico pensando numa resposta. Mas, de supetão, sempre me vem à mente as poéticas letras da canção de Belchior: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano/Sem dinheiro no banco/Sem parentes importantes/E vindo do interior.” Isso também me faz lembrar o canto humano e religioso do Padre Zezinho, que nos faz voltar à nossa origem: “Eu vim de lá / Do interior / Aonde a religião / Ainda é importante.” Fico quieto e apenas olho; o olhar perdido nesses tempos de muita carência.

Onde aos olhos do mundo, a miséria desfila no cenário colossal da maior potência capitalista. Por essas e outras, tenho me dedicado a umas leituras amenas, agradáveis, em que a filosofia e a poesia se entrelaçam num aperto tão íntimo para que eu possa fazer um retorno onírico à época na qual o banco mais aprazível era o de praça. Nele, vivia-se o conforto da brisa e da paz: conversava-se, namorava-se, cochichava-se e, no bem sentido, falava-se mal e bem da vida alheia. 

Mas não era bem isso de que queria falar. Esta semana, nessa incessante busca pela felicidade, participei de um evento, patrocinado pelo CNJ. Traduzo: Conselho Nacional de Justiça. Órgão constitucional que é detentor de competências fixadas no art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, entre as quais o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, além do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes e juízas.

Esse evento do CNJ teve início às 10h e se estendeu, somado o intervalo, até às 18h. O tema que foi amplamente discutido: II Democratizando o Acesso à Justiça: Justiça Social e Poder Judiciário no Século XXI. Foram vários palestrantes, todos dissertando sobre as questões mais diversas, centradas na democratização e no acesso à Justiça. Lembro aqui algumas falas, para que se tenha uma ideia da preocupação desse novo tempo.

Um dos palestrantes foi o Ministro Luiz (ou Luís) Felipe Vieira, que discorreu sobre os desafios a serem vencidos para que se alcance uma Justiça justa. Primeiramente, referiu-se ao uso das novas tecnologias, que, com a pandemia, ao que tudo indica, vieram para ficar, devendo ser adotados os indispensáveis cuidados com a sua utilização. A par disso, como obstáculo para esses avanços, o desemprego endêmico e a quase insuperável desigualdade. Referiu-se então ao instituto da gratuidade da justiça como uma ferramenta essencial para democratização da Justiça, acentuando que o acesso à Justiça consiste na defesa técnica dos direitos sem o sacrifício do sustento do mais vulnerável.

Disse mais o Ministro Felipe Vieira: não há cidadania sem justiça. E a resposta do Judiciário deve ser rápida e justa, não importando a espécie de ação proposta, ou se o recurso tem efeito suspensivo ou devolutivo, ou mesmo se prazo é peremptório ou dilatório. O que importa é a resposta. Dessa lição se deduz que o formalismo em seu excesso, objetivando apenas a produção de decisões para fazer número nos mapas estatísticos, não é a reposta que importa à aquele que busca a justiça.

Bem antes de participar desse evento do CNJ, passei uma dessas manhãs agradáveis, fazendo uma leitura passageira de Aristóteles, especificamente a sua célebre obra Ética a Nicômaco. Como diz o slogan da TV: vale a pena ler de novo. Nessa rápida releitura, cheguei à parte em que o filósofo grego discorre sobre a Justiça e sobre o juiz. Do juiz afirma esse pensador da Grécia Antiga: o juiz estabelece a igualdade. E argumenta sobre os motivos pelos quais, quando ocorrem as disputas, as pessoas recorrem a esse juiz, na certeza de que recorrer ao juiz é recorrer à justiça, “na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio-termo, obterão o que é justo”. Juiz e Justiça estão, pois, interligados. Nessa concepção aristotélica, a função do juiz, ao intermediar a justiça, consiste em dar o que é igual de acordo com a proporção. E mais, ensina o sábio de Estagira: “Na ação injusta, ter muito pouco é ser vítima de injustiça, e ter demais é agir injustamente.” 

Talvez esteja aí, nessas lições do filósofo grego, o mundo sonhado por muitos. Mas para alguns, aferrados a ter em demasia, é um mundo socialista, não cristão, embora Aristóteles tenha vivido séculos antes de Cristo.
Nesse evento, ouvi muitas lições. Algumas serviram para fortalecer o que eu já pensava sobre o fazer justiça, ainda quando militava nas lides advocatícias. Meu escritório tinha o cuidado de cobrar bem de quem podia pagar. Em contrapartida, prestava serviços para os menos aquinhoados, sob o pálio da assistência judiciária. Neste momento dramático em que estamos vivendo, onde prevalece a pregação do ódio, mais do que nunca as pessoas precisam de solidariedade. E a Justiça deve ter como foco esse fim específico de, como ressalta Aristóteles, restabelecer a igualdade, ou seja, dar a cada um de acordo com a proporção do que é seu. 

Entre tantas lições, ouvi nesse seminário frases que me alentaram para o sentido essencialmente humano do Judiciário, como “saber ver o outro”. Aí está a dimensão humana da Justiça. Sem essa dimensão, não há Justiça. Apenas um arremedo estatístico de decisões. Nada mais. Foi dito ainda: o novo paradigma de acesso à Justiça consiste na sua humanização. Isso em detrimento daqueles que defendem a maquinização, cujos resultados estatísticos são mais ufânicos. 

Pois bem. Quero agora me referir ao Ministro Herman Benjamin, um humanista de formação, com profundos conhecimentos de Direitos Humanos e um especialista em Direito do Consumidor. Primeiramente, deve ser dito que os direitos humanos são o fundamento da Constituição do Brasil, ao fixar como um dos seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana. Isso é o bastante. Mas o Ministro Herman declarou de forma peremptória e com total razão: nesta pandemia, há um grande vitorioso: o Estado social de direito, por se traduzir num Estado assentado na solidariedade. E ressaltou: apesar de todo negacionismo e anticientificismo.

eixou, por último, a pergunta essencial: quem irá pagar o preço dessa solidariedade? Todos ou apenas os mais carentes, como já ocorreu em passado recente?  A resposta só o futuro nos dirá. Isso se não tiver algum ministro que entendo que o futuro virou passado e não deve mais ser discutido. O tempo dirá. Mas o Poder Judiciário não deve perder, jamais, a sua vocação humanística. Ainda há juízes em Berlim.
 
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