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20/02/2021 às 00h00min - Atualizada em 20/02/2021 às 07h00min

Aída Cúri e o direito ao esquecimento

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Vulgarmente, entende-se direito como sinônimo de lei, prevalecendo nessa concepção as ideias normativistas em contraponto aos conceitos do institucionalismo jurídico, que compreende o direito como fenômeno preexistente à norma elaborada pelo Estado. Com efeito, esta corrente filosófica concebe uma estrutura pré-jurídica que impõe regras de convivência aos membros da sociedade, que, embora não tenham caráter formal, servem de parâmetros nas relações que se estabelecerem entre os seus integrantes. Nessa concepção, não é o Estado quem cria o direito, já que este existe anteriormente à norma legislada. O Estado apenas declara o direito preexistente, que é extraído da matéria social.

Tomo como premissa essas concepções: a normativista e a institucionalista. Mas de tudo se sobressai essa verdade sociológica: a sociedade é um organismo vivo, estruturada com valores culturais, educacionais, sociais, econômicos, políticos, éticos, quer se encontre em elevado estágio civilizatório, quer ainda dominada por valores que nada têm a ver com o mundo cibernético e globalizado em que vivemos.

O direito, como fenômeno jurídico-social, é um produto das relações sociais.  Há um axioma latino que diz: “ubi societas, ibi jus” – onde está a sociedade, aí está o direito. A tridimensionalidade do direito traduz essa máxima: os fatos sociais são valorados, ou se projetam como valores, sendo-lhes atribuídos peso axiológico, para que sejam transmudados em norma, a lei. É o fato, valor e norma, num concerto dialetizado.

Dito tudo isso, vamos falar de Aída Cúri e o direito ao esquecimento.

Aída Cúri foi uma jovem, de 18 anos de idade, dos quais 12 passara num colégio de freira. Num certo dia, quando voltava da escola, foi abordada por um grupo de rapazes. Um deles a convidou e a convenceu a subir a um dos apartamentos de um prédio, na Av. Atlântica, Copacabana, onde seu pai era síndico. Os dois jovens: Ronaldo Guilherme de Souza, típico playboy da época, e Cássio Murilo, ainda menor. Mais o porteiro do edifício, Antônio João. Desse início, várias versões foram divulgadas pela imprensa da época – julho de 1958. Segundo os jornalistas que acompanharam o caso, entre os quais David Nasser, da revista O Cruzeiro, com circulação de 800 mil exemplares, a versão mais convincente é que os dois rapazes, com a ajuda do porteiro, levaram a Aída para o terraço, onde tentaram currá-la, ou seja, estuprá-la. Bravamente, ela resistiu. Bateu com cabeça no chão. Os seus agressores, pensando que estivesse morta, atiraram-na, ainda com vida, do 12º andar. Feita a autópsia, ficou comprovado que ela ainda estava viva quando foi jogada.

Daí em diante, começou o drama. Os acusados, com exceção do porteiro, eram filhos de família abastada; a vítima, de classe média. O jornalista David Nassar assume publicamente, pelas páginas de O Cruzeiro, a acusação contra os denunciados pelos crimes a eles imputados. A luta desse temido jornalista foi imensa, tendo afrontado, com fortes argumentos, num primeiro momento, o magistrado que impronunciou os acusados. Na curso de todos esses debates nas rádios, nos jornais, na ainda embrionária TV, e na revista O Cruzeiro, os réus foram a júri, com a condenação de um deles, Ronaldo. Cássio era menor. O porteiro foi absolvido.  

Todos esses fatos ocorreram nos anos 50. A TV Globo, em 2004, exibiu, no programa Linha Direta, o caso, reavivando o que ocorrera naqueles conturbados anos. Os únicos irmãos vivos da vítima Aída promoveram uma ação indenizatória contra a Globo, pedindo indenização por danos materiais e morais, sob o fundamento de que a divulgação do crime, décadas depois de sua ocorrência, reavivou a memória dos fatos, reabriu feridas emocionais e terminou por abrir margem para exploração econômica, em favor da emissora, da dor e do sofrimento da família Cúri. A tese jurídica da ação: o direito ao esquecimento. A demanda foi inexitosa nas duas instâncias do judiciário do Rio de Janeiro. No recurso ao STJ, o pleito dos irmãos de Aída não foi acolhido, embora se tenha admitido a possibilidade do direito ao esquecimento. No Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE com repercussão geral, foi fixada a seguinte tese: “Tema 786 — É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.”

O que penso. No meu modestíssimo entendimento, com todo respeito que devoto à nossa Corte Constitucional, sigo aqueles que divergiram e divergem e defendo a tese da compatibilidade do direito do esquecimento com a Constituição Federal. Acrescente-se que o direito ao esquecimento, normativamente, já vem sendo admitido no ordenamento jurídico brasileiro, como se pode constar no § 1º do art. 43 do CDC e no art. 748 do CPP. Em decisões, o Tribunal Constitucional alemão e dos países europeus têm admitido o direito ao esquecimento. Como a questão em debate é grande, ressalto que o ministro Edson Fachin votou pela parcial procedência do recurso extraordinário para reconhecer a existência de um direito ao esquecimento no Brasil, afirmando que a Constituição Federal estabelece os pilares do direito ao esquecimento, ao prever a dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade e o direito à autodeterminação informativa. Citou o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.”

Penso que, no futuro, bem próximo, o STF tem que modificar esse seu entendimento. Cito a tese do colega magistrado deste Estado, Paulo Brasil Menezes, que, num estudo publicado na Conjur, aponta soluções hermenêuticas, referindo-se a uma resposta constitucional contextualizada, para construção do direito num diálogo judicial. É um dos caminhos hermenêuticos a ser seguido, embora a resposta esteja também na interpretação sistemática do nosso ordenamento jurídico, a partir dos direitos fundamentais albergados na Carta Magna.
 
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