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13/02/2021 às 00h00min - Atualizada em 13/02/2021 às 00h00min

Viver é também sonhar

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.


 
Faz algum tempo. E como faz! Estava eu numa dessas noites bem sozinho. Mas numa solidão de me fazer feliz. Ouvia uma ou outra música num três em um. O som suave, bem notívago, saía das duas caixinhas, postas numa distância de uns dois metros. A noite nem quente, nem fria. Agradável. Boa para o deleite de uma aprazível e desgustante canção do nosso cancioneiro popular, embora eu também goste da voz e do ritmo jazísticos de Billy Ekstein ou Louis Armstrong. La vie en rose é uma dessas sublimações musicais, interpretadas por Armstrong, que nos despertam sentimentos e sonhos que nos exortam a viver com mais intensidade  Mas... não quero ser piegas. Muito menos traduzir aqui sentimentos duvidosos. O poeta Belchior, na célebre e perene criação musical que o eternizou, já nos provocava para o grande desafio da vida, ao alertar-nos que viver é melhor que sonhar. Voltaremos a ele, a este rebelde cearense, que enalteceu o canto e o cantar de todos os sentimentos da sua terra, onde nasceu para mundo a vigem dos lábios de mel, o primeiro amor de muitos que a conheceram nas páginas de Alencar. Stop. Sei que há muito de apelo nesta última frase. Muitos perguntarão: quem essa virgem dos lábios de mel? A resposta mais seca é: não existe mais. Ou talvez ela esteja, com os cabelos soltos, negros como as asas da graúna, numa jangada que transita pelos verdes mares bravios da sua terra natal. 

Mas, deixemos essas atemporais insistências românticas de lado. Vivemos os tempos do BBB. Nada a ver com Brigite Bardot, com mais um B. É o BBB 21, onde todas as questões nacionais – econômicas, políticas, raciais, éticas, técnicas, sexistas, de gênero e outras mais – são discutidas em todos os rincões deste nosso Brasil. Qualquer conversona ou conversinha terá que tratar desse assunto tão importante e cativante. Nem a pandemia escapa. BBB nela. É o mundo cão dramatizado. O que se disse, o que não se disse, ou ainda o que se poderia ter dito e que ainda vai se dizer. As redes sociais discutem dia e noite, pela madrugada, no raiar do dia, para examinar e analisar o perfil de cada bebebista.  Tenho um leve pressentimento de que, com a criação dos novos ministérios, para atender o apetite do famigerado centrão, alguém, do também famigerado BBB, será nomeado para o ministério de alguma coisa qualquer, que, por força do exercício do patriótico cargo, sairá da casa, que dizem ser a mais vigiada do país, para assumir a importante indelegável função de vigilante dos nossos destinos. A partir daí, não tenho dúvida, o negócio caminhará a passos largos e teremos a grata satisfação de ter um BBB, quem sabe, no Ministério da Justiça ou Educação, lutando pela igualdade racial, sem quaisquer resquícios de homofobia. E o Brasil, com certeza, será outro. Até Cabral será capaz de pular da sua última morada e vir prestar sua providencial reverência histórica a todos nós bebebistas.

Continuo a insistir com Belchior: viver é melhor que sonhar. Aproveitemos todos os momentos desta passageira vida. Alhures disse o poeta John Lennon: “A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos.” Enquanto o enquanto não acontece, os sonhos, nem sempre concretizados, embalam o passar da vida. Um outro John, o filósofo de século XIX, Stuart Mill, deixou para o mundo esta outra pequena lição: “É melhor ser um homem insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito.” Ainda bem, não estou nem satisfeito nem insatisfeito. Como diz o vulgo: tou na minha.

Reflito: não sei bem o que isso tem a ver com o emaranhado de coisas aqui misturadas: Belchior, Lennon, BBB e Stuart Mill. Sei apenas, e, por isso sei muito pouco, que é bem melhor ouvir Belchior e Lennon do que ser um BBB satisfeito a dizer enxurradas de futilidades. Ou pensar como Stuart Mill do que ouvir essa filosofia de alcova que vai além das futilidades dos nossos sonhos.

Pois bem. Na noite lá do início, estando eu em companhia do meu três em um, não ouvi Belchior – ainda estava a dar os primeiros passos na praia de Iracema. Nem Billy Ekstein. Ouvi com insistência sonhadora a canção Até pensei, uma lírica modinha de Chico Buarque. Um poema lindíssimo, que nos faz sonhar e viver, ou viver e sonhar. A noite, indo pela madrugada, e, como o Juca do samba, virou dia, e o LP se repetia, e repetia a bela canção de Chico, cujos versos evocam esses poéticos sonhos: 

Junto à minha rua havia um bosque
Que um muro alto proibia
Lá todo balão caia, toda maçã nascia
E o dono do bosque nem via
Do lado de lá tanta aventura
E eu a espreitar na noite escura
A dedilhar essa modinha
A felicidade morava tão vizinha
Que, de tolo, até pensei que fosse minha.
E mais:
Junto a mim morava a minha amada
Com olhos claros como o dia
Lá o meu olhar vivia
De sonho e fantasia
E a dona dos olhos nem via
Nesse viver e sonhar, a noite e a madrugada se foram. Mas não os sonhos e a fantasia, porque viver é também sonhar.
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