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23/01/2021 às 00h00min - Atualizada em 23/01/202 às 00h00min

O Tormento de Santiago

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.


Um romance ou uma novela? Não sei. Mas, para mim, uma excelente narrativa. Mas os teóricos, preocupados com o gênero literário, poderão optar por um ou pelo outro. Trata-se de uma narrativa literariamente bem estruturada. Assim como ocorreu com Kafka, em O Processo, e Albert Camus, em O Estrangeiro, a obra não contempla uma temática que seja de conteúdo jurídico, nem de controvertidos ou espetaculosos julgamentos de tribunais, como ocorrem com os romances de John Grisham, a exemplo das tramas urdidas no thriller jurídico O Júri e em outras obras de sua autoria, que são vendidas como hambúrguer nos McDonald’s do mundo civilizado ou em processo civilizatório. 

Pois bem. Terminei de ler a obra de Lourival Serejo, cujo título é bem expressivo e nos convida a ter o prazer da leitura: O Tormento de Santiago. Estou aqui a falar – e é bom ressaltar-se essa advertência – de um prolífico escritor maranhense, que tem marcado a sua vida literária em gêneros os mais diversos, como crônicas, poemas (de excelentes qualidades) e uma vasta produção jurídica, no estudo do Direito de Família, Eleitoral e da Ética. Não se trata aqui de uma mera apologia de retórica e oportunista. Há uma grave necessidade de reconhecimento dessas virtudes literárias.

A citação de Kafka (O Processo) e Camus (O Estrangeiro) é em razão de serem duas obras seminais de dois universalmente consagrados romancistas, que contemplam dois temas, em que a dúvida constitui a centralidade da narrativa. Em O Processo, do tcheco Franz Kafka, a temática desenvolvida por esse consagrado romancista fala das angústias dos seres humanos, em face da ausência do significado das coisas que nos rondam, ante a opressão de um sistema que não justificava o formalismo do sistema, ao impor a cada um de nós determinados comportamentos. Na narrativa kafkiana, o personagem Joseph K acorda, numa manhã, e é preso, acusado de um crime que não lhe é esclarecido qual seja o delito e que o atormentará até o final da narrativa. Nesta obra, Kafka adverte que, quantas e quantas vezes, no curso de nossas vidas, respondemos nos tribunais por culpa de crimes criados na mente ficcional do acusador.

Albert Camus deixou para o mundo sua grande obra ficcional: O Estrangeiro. Personagem central: Sr. Meursault, cuja mãe, Sra. Meursault, já no início do romance, morre, e marca a frase introdutória desse célebre romance: - Hoje, mamãe morreu. Daí em diante, começam os tormentos de Meursault, a partir da constituição dos traços psicológicos desse personagem, com enfoque do seu relacionamento com as pessoas do seu convívio. Assim, Camus constrói um personagem destituído de ambição e infenso ao amor e ao formalismo. Um personagem apegado à verdade, sendo esta a sua verdadeira culpa. No final da história, por ser assim, verdadeiro, é julgado e condenado à morte.

Deixemos Kafka e Camus e voltemos à obra de Lourival Serejo – O Tormento de Santiago. Toda ela é estruturada em resumidos capítulos, numa linguagem precisa, clara, mas de muita força literária. O tema principal trata do personagem-narrador Santiago, que cometeu um crime, sem que esclarecesse qual, estando na iminência de ser julgado. Mas Santiago tem consciência do que fez, e, no início da obra, faz esta afirmação: “A natureza do meu crime retirava-me qualquer respeito por parte dos agentes policiais.” Mesmo assim, no curso de toda a narrativa, o personagem, o próprio narrador, que fala sobre os seus tormentos, não diz qual o horrendo crime que praticou. Porém vive conscientemente esse drama pessoal. E apresenta-se, semelhante ao que ocorreu com o personagem de Camus, de O Estrangeiro, como um homem só, despido de sentimento de amor-próprio, em busca, como se fosse um náufrago, de uma tábua de salvação. Procura essa tábua na figura de um advogado, que examina a sua questão e faz um perfil dos possíveis juízes ou juízas que julgarão o seu caso.

Desse momento em diante, a narrativa ganha relevo psicológico, uma vez que as características pessoais dos possíveis julgadores são expostas pelo narrador, nelas constando todos os elementos humanísticos favoráveis ou desfavoráveis a um veredicto absolutório ou condenatório, expostos alfabeticamente. Ao delinear esses perfis, a narrativa alcança seu ponto alto, passando o leitor a ter uma ideia de que quem julga é um ser humano repleto de virtudes, defeitos e vícios. Dos perfis dos possíveis julgadores do crime de Santiago, ora se destaca o juiz ou juíza que “tem uma brancura de solidão”, ou que esteja sempre sorridente, ou conhecida como mão de ferro, instrumentalista ao excesso, rigoroso na formação da culpabilidade, um homem cordial, mas que reage, narcisista por natureza, um leitor técnico, que não gosta de perder tempo com poesias, de pouco estudo, apenas pragmático, uma executiva a dirigir um departamento prestador de justiça, o frio aplicador da lei, o julgador com semelhança a um funcionário público, portanto apenas cumpridor de metas, mas pouco dedicado ao estudo. Ou ainda o juiz ou a juíza intelectualmente preparados.

A obra literária de Lourival Serejo chega ao ápice com o julgamento de Santiago, que, ao lado do advogado, toma conhecimento da sentença e segue o seu caminho para viver os seus tormentos.
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