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16/01/2021 às 00h00min - Atualizada em 16/01/2021 às 00h00min

O alienado desvario de Trump

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Aonde chegaremos? Essa pergunta me é insistente. E muito mais tem sido insistente, por constituir-se numa obsessão. Nem a praga persecutória do coronavírus tem a força de afastá-la de mim. Sou daqueles consideram a democracia um valor supremo. Por ela, lutei, o quanto pude. E foi uma luta bem lutada. Alinhei-me ao lado de Renato Archer e de outros bravíssimos companheiros, para fazer o bom combate e derrotar o arbítrio, que então vicejava, ainda com bastante força, nesta nossa pátria de Florestan Fernandes, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e tantos mais pensadores, artistas e intelectuais, como Gilberto Freyre, que reescreveram, de forma crítica, a história do Brasil, sem o ufanismo fantasioso do oficialismo patriótico. Repito: lutamos o bom combate. Em alguns momentos, perdemos, com os sentimentos fulminados pelas incertezas, como ocorreu com emenda constitucional das diretas-já. Mas, erguemos a cabeça e continuamos a utilizar as armas de que dispúnhamos na luta pelas liberdades públicas e pela construção do sonhado Estado de direito.

Por todas essas reminiscências históricas, amplamente documentadas em vários livros e filmes, escritos por autores isentos e comprometidos com a democracia, essência de regime de governo do povo, sem rescaldo de autoritarismo, assomou-me o temor e a perplexidade ao ver a exibição pelos canais de TV das cenas grotescas do dia 6 de janeiro, nos Estados Unidos, país considerado uma das pátrias da democracia. O Congresso (Capitólio) invadido por forças reacionárias, inconformadas com o desfecho da eleição presidencial. E o mais grave: sob o comando arruaceiro do candidato derrotado, o ainda presidente Donald Trump, que, em discursos reiterados, incitava a sua turba ignara de seguidores a se insurgirem contra o processo democrático eleitoral do América do Norte.

Quem conhece a história norte-americana, ainda que em supérfluas leituras, sabe o quanto o seu povo, do seu modo, tem lutado em constantes embates para construção de uma igualdade, ainda assim não alcançada, para preservar o seu sistema de valores democráticos. A Guerra Civil – de Secessão – é um exemplo histórico, haja vista que os Estados do Norte e do Sul deflagraram entre si uma ensandecida luta por valores absolutamente antagônicos, tendo como eixo da divergência a emancipação da escravidão. Lincoln, até hoje o grande presidente dos EUA, manteve-se irredutível na realização dos valores e ideais democráticos, levando o conflito até o fim, culminando com a derrota dos Estados do sul, defensores intransigentes da escravidão negra, que sustentava o seu sistema econômico.

Recentemente, escrevi um texto – A democracia cansada -, no qual trato de algumas dessas questões, que, penso, devem ser refletidas e discutidas em todos os foros, acadêmicos ou não. Isso quer dizer: no seio da família, nas associações, nas academias de letras ou não, nas escolas, de quaisquer níveis, nos sindicatos, nas praças públicas, enfim, em qualquer lugar, até nos clubes de mães ou recreativos. Os gregos, que criaram a democracia, quando assim o fizeram, a partir das ideias de um aristocrata progressista, Clístenes, que liderou o movimento de derrubada da tirania, tiveram como escopo, além de retirar o poder das mãos dos eupátridas (a classe dominante) e o concentrasse em mãos de todos os cidadãos, transformar o processo de decisão numa convivência pública de civilidade; depois, outros governantes, como Péricles, seguiram a mesma trilha. E ainda instituíram, como defesa desse sistema de poder popular, a sanção do ostracismo, pelo período de 10 anos, a todos aqueles que se insurgissem contra os postulados democráticos da igualdade e da liberdade. Em decorrência, as regras democráticas deveriam prevalecer contra todo e qualquer ato de tirania, caracterizado pelo autoritarismo e pela usurpação golpista, dando-se sustentação a um regime de governo, amparado na ordem jurídica vigente, e não na força militar das armas, mas sim no poder das ideias e das suas sagradas instituições, nas quais se alicerçam os fundamentos do Estado de direito, erigidos em regras de direito e éticas, instituídas pela vontade do povo.

Trump, no seu delírio insano, inapropriado para uma cultura liberal-democrática, perde as eleições, com as mesmas regras que antes o elegeram, golpeia as instituições e enlameia a democracia norte-americana, que nunca foi um mal entendido, como ocorre com nossa, no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. Como o personagem alienado Dr. Simão Bacamarte, tenta fugir do manicômio da derrota eleitoral e vai aos quatro cantos a denunciar o seu pesadelo de que as eleições foram roubadas. Essa doentia ideia de um Trump enlouquecido é recepcionada pelos seus seguidores e, como se todos fossem contaminados por essa insana obsessão, transformam, em perigoso delírio, o Capitólio na Casa Verde, e a poderosa América na fictícia Itaguaí, do famoso conto machadiano. Ainda bem que resta a 25ª Emenda, uma espécie de camisa de força, para salvar o mundo do incêndio desse Nero dos nossos tempos.
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