Vi a cena. Grotesca. Cruel. Empática. Repleta de barbaridades, comuns aos nossos tempos. Mas, confesso: não consegui ver toda a crueldade do espancamento até a morte. Talvez por não ser adepto de filmes de terror. Isso desde meus tempos da infância de rua, em que matar alguém era crime, previsto na lei penal, e o corpo da vítima era estampado, nas páginas de algum jornal sensacionalista. E o assassinato decorria sempre de uma luta entre dois rixentos antagonistas, que tiravam as suas diferenças empunhando uma afiada peixeira. Velhos tempos. Pouco mudou. Talvez sim. A crueldade é mais insana, coletiva, grupal, teatralizada, com força bruta de policiais e seguranças, treinados para matar, vulgarizada nas redes sociais, nas telas das TVs. A vítima – de nossa pátria amada e da pátria amadíssima, bem ao norte de sonhos alguns – é um negro ou uma negra, um pobre ou um miserável, que se escondem num quarto infecto e escuro de todas as favelas do nosso mundo e do mundo inteiro. A vítima é vítima da desigualdade e do desamor assassinos.
O que fazer? Ficar calado? Não ser ou ser daltônico? Afirmar, num brado retumbante, a gastíssima alegoria de que todos somos iguais perante a lei? Ou a famosa exaltação de Martin Luther King, aos pés do Memorial Lincoln: I have a dream? O sonho de um mundo sem ódio, sem barbárie, de amor, de solidariedade, de fraternidade? É possível viver-se essa utopia? A resposta é nossa; a responsabilidade é nossa. O pior é o silêncio, que denuncia a nossa covardia, o nosso comodismo, de não lutarmos por um mundo fraterno, de respeito aos valores humanos. O mesmo Luther King nos alerta desse crime de omissão cívica: - O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons. Pois bem. O silêncio dos bons é tão cúmplice desses bárbaros quanto o riso de escárnio daqueles que aplaudem a crueldade, ou se dizem daltônico.
O nosso silêncio deve ser um grito de revolta que saia das nossas entranhas para dar a entender aos insensatos que não basta ser daltônico, que não basta repetir a alegoria de que todos são iguais perante a lei, que se impõe sairmos de nossa quietude e comodismo classe média, botarmos a cabeça para fora, respirar o ar pútrido desta nossa sociedade podre e clamarmos ao mundo e a todos de que todos os nossos sonhos se resumem em realizar os valores humanos: vida digna, educação, lazer, emprego digno, salário digno, família digna, moradia digna, escola digna. Todas as nossas complexidades estão em contribuir para que pessoa seja tratada como pessoa, ser humano. E tudo isso não se faz com ódio, com armas, com desprezo, matando, assassinando, vitimando a infância das favelas, as crianças de nossas ruas, dos nossos carentes bairros, mas fazendo justiça, na solução ambígua entre o rico e o pobre, o empregador e o empregado, as grandes e milionárias corporações econômicas e de quem a elas recorre para adquirir bens de consumo, muitas vezes induzidos por uma publicidade enganosa. Justiça – há que se entender – não é apenas aplicar a lei, a letra fria da lei, feita em contrariedade aos interesses daqueles que vão às urnas eleger seus representantes, os quais, traiçoeiramente, não os representam, porque são vassalos dos seus ricos financiadores e, como estelionato, lhes servem migalhas para enganar a fome de quem os elegeu.
Estamos horrorizados. E não é de hoje. Dissemina-se em nossa terra, que já foi chamada de Terra de Santa Cruz, o ódio, a violência, a insensatez, o culto à morte, como solução de todas nossas angústias existenciais ou não existenciais. De Santa não nos resta mais nada. Da Cruz, quem sabe, muito.
Na filosofia antiga ainda, Platão, na Alegoria da Caverna, Platão narra que num certo dia um dos prisioneiros acorrentados consegue libertar-se e sair das trevas que reinavam no seu interior. Ao sair, em razão da claridade, ficou cego. Mas seus olhos, aos poucos, foram se acostumando com a claridade e o prisioneiro voltou a enxergar, deparando-se com o mundo da liberdade, de luz, cores, alegria. Sentiu-se feliz com essa nova realidade. Ele volta para a caverna para reencontrar-se com os seus companheiros, presos e acorrentados, com a intenção de libertá-los daquela tortura. Contou-lhes o mundo novo e feliz que vira lá fora. Os acorrentados não acreditaram na sua história. Revoltaram-se. Onde estavam, tinham pelo menos a comida. Quiseram-lhe matar. Preferiam o seu mundo, o mundo trágico, a buscarem um mundo mais feliz, pois já sem ânimos para revolucionarem os valores de uma sociedade justa.
Essa alegoria de Platão nos exorta a tirarmos as correntes do obscurantismo e vivermos uma realidade de muita luz, com novos horizontes. Mas é apenas uma alegoria. A responsabilidade de convertê-la em realidade é só nossa, antes que um filho nosso seja um dos acorrentados.