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21/11/2020 às 00h00min - Atualizada em 21/11/2020 às 00h00min

Amar a poesia

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


 
Fazer verso é ser poeta? Não. Ou sim. Depende do poema e do verso. Como diz Machado de Assis, a verdade é essa, sem ser bem essa. Desde quando me arvorei, em tempos idos, a dar aulas de literatura, e após sucessivas leituras, é que concluí que poesia é uma manifestação estética, que não está apenas contida no uso conotativo da palavra. Poesia é arte. Não é técnica. Não é simplesmente metrificar. Nem rimar. É ritmo, é música, é escultura, é pintura, é força estética criativa do ser humano, que, no ato de criar, se desumaniza a si mesmo e transfigura o mundo real, fazendo nele conter todos os sentimentos do mundo (Drummond). Poesia, como estética, é Cem Anos de Solidão, de García Márquez, é O Velho e o Mar, de Hemingway, é A Carolina e D. Casmurro, de Machado de Assis, é Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, de Cora Coralina, são as crônicas de Rubem Braga, de Paulo Mendes Campos, de Fernando Sabino, são os poemas de Fernando Pessoa, de Manuel Bandeira, de Cecília Meireles, de Waly Salomão, de Torquato Neto – os quais deixaram vasta contribuição estética no movimento artístico Tropicália -, de Carlos Drummond de Andrade (José: E agora, José? A festa acabou, / A luz apagou,...), que Paulo Diniz tão bem associou a poesia da sua música à poesia de Drummond e fez de José esse encanto popular, como as cantigas de roda que eram cantadas nas portas das casas, nos tempos em que havia portas, onde as moçoilas se deleitavam na poesia de uma fraternidade que se esvaiu com tempos novos.

Amar a poesia é amar a arte. Tantos motivos os motivos. No início, quando dei por mim, adorava os poemas de Manuel Bandeira. E um dos primeiros que me encantou, foi Desencanto: - Eu faço verso como quem chora / De desalento... de desencanto... / Fecha o meu livro, se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto. / Meu verso é sangue... Volúpia ardente... Depois, no moderníssimo, Pneumotórax, donde se retira esse enigmático verso: - A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Nele há toda uma provocação poética, que questiona o sentido da própria vida, sobretudo quando o poeta conclui: - A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Bandeira me acompanhou por um bom tempo nas minhas volúpias literárias. Dele não me divorciei. Ao meu lado, há sempre um dos seus livros, para que esteja a fazer a releitura das suas poesias, como Irene no Céu – Irene preta / Irene boa / Irene sempre de bom humor.

Amei e amo Fernando Pessoa, estando ou não acompanhado de todos os seus heterônimos, destacando-se em Caeiro o sentido metafísico da vida: - Medo da morte? / Acordarei de outra maneira, / Talvez corpo, talvez continuidade, talvez renovado, / Mas acordarei. / Se até os átomos não dormem, por que hei de ser eu só a dormir? E ainda, a conviver com todos esses poetas esteticamente encarnados por Fernando Pessoa, há o lirismo, que sempre me encanta – Depus a máscara e vi-me no espelho... / era a criança de há quantos anos... / Não tinha mudado nada... – e ainda o realismo que se eternizou na poética pessoana – Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Pois bem. Cecília Meireles e Cora Coralina me fizeram despertar mais ainda para o sentido lírico da poesia – manifestação esta de subjetividade que discute os nossos sentimentos mais íntimos. Gonçalves Dias já o fizera antes com os inesquecíveis poemas Canção do Exílio (Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá...), Canção do tamoio (Não chores, meu filho: / Não chores, que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos, / Só pode exaltar.) e Ainda uma vez – adeus! (Enfim te vejo! – enfim posso, / Curvado a teus pés, dizer-te, / Que não cessei de querer-te, / Pesar de quanto sofri.). Versos líricos que ficaram gravados no curso de toda uma vida.

De Cecília me vem o seu poema Motivo em que enaltece o seu cantar, cuja primeira estrofe é o sentimento profundo dessa grande artista do fazer poético: - Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta. Aí está o sentido do canto de uma poeta que fez da palavra um instrumento estético de lapidação de sua (e nossa) poesia. Cora Coralina, descoberta por Carlos Drummond aos 70 anos de idade. Profissão: quituteira. Fez da vida poesia. Em O Cântico da Terra é ela exalta esse sentimento maior: - Eu sou a terra, eu sou a vida. / Do meu barro primeiro veio o homem. / De mim veio a mulher e veio o amor. / Veio a árvore, veio a fome. / Vem o fruto e vem a flor (...) Eu sou a grande Mãe universal. / Tua filha, tua noiva e desposada. / A mulher e o ventre que fecundas. / Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.

A poesia que amo, está no labor estético. Está na música. Na pintura. Na vida. Está no sentar, no ler, no ouvir, no sentir. Em todas nossas perplexidades. Mia Couto, moçambicano, que tem utilizado a palavra para dar voz ao seu povo sofrido, num dos seus contos – As Baleias de Quissico -, inicia-o com esta poética e encantadora abertura: - Só ficava sentado. Mais nada. Assim mesmo, sentadíssimo. O tempo não zangava com ele. Deixava-o. Bento João Mussavele. Pois bem: uma construção de muito sentimento poético, porque elaborado com muita força criativa, a nos desafiar a seguir os passos do narrador, que nos envolve no seu mundo ficcional. Isto é arte; é poesia.
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