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10/06/2023 às 00h00min - Atualizada em 10/06/2023 às 00h00min

Crônica da Cidade

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

 

De Thomas Hobbes ao Papa Francisco

Estando em São Paulo, esta megalópole quase intransitável, dado o intenso tráfego de veículos, quer seja no raiar do dia ou, no curso da noite, estou, quando preciso me deslocar, sempre aboletado num táxi. Fica mais fácil vencer a distância, embora arcando com uma despesa a mais, a exigir um certo cuidado com o orçamento familiar.

Nessas idas e vindas, somos conduzidos por motoristas que falam o suficiente para nos deixar no ponto de chegada, apenas com as informações que lhes passamos; mantêm-se quietos, atentos ao trânsito, sempre conturbado; enquanto outros condutores são tagarelas, ademais quando provocados pelo passageiro. Em vários momentos, comprovei essa dicotomia de comportamento. Às vezes, com algum meio termo. Foi o que ocorreu num trajeto que fiz da Avenida Paulista para residência da minha filha, onde me encontro passando esta temporada são-paulina. Iniciamos eu e minha mulher uma conversa com o motorista do táxi. Defendíamos algumas situações, cujos temas tinham uma abrangência generalizada. Até em determinado momento desse efêmero diálogo, não havia conflito de ideias. Seguíamos coerentes nessa conversa, resumida nesta frase, que tomamos como premissa: o mundo está mesmo de cabeça pra baixo. Mas… há sempre uma adversidade. Chegávamos ao ponto final do trajeto. Alguns minutos antes donde saltaríamos, abriu-se uma dissidência sobre o uso de armas. O condutor do veículo não abriu mão de suas convicções, quanto à premente necessidade de fazer uso da arma, para sua defesa pessoal. E enfatizava: - Quem irá me defender? Tentei argumentar. Sem êxito. A sua posição era irreversível. Percebi que o diálogo, até então, sem sobressaltos, não poderia mais continuar nessa linha intransponível de conflito, que se instaurou na defesa intransigente do uso da arma. Ainda tentei alegar que a arma é geradora da violência, razão pela qual deveria sofrer restrições legais quanto a sua utilização. Nada. O efêmero debate parou ali mesmo. Desci com alguma preocupação. O que é natural. E voltei às minhas leituras como o faço sempre.

Não por acaso havia adquirido um livro do Papa Francisco, sob o título Vamos sonhar juntos – o caminho para um futuro melhor, editado em 2020, em plena pandemia da Covid-19, cujo vírus ceifou a vida de milhões pessoas, algumas ainda em pleno vigor da existência. Em determinada passagem desse livro, no prólogo, o Papa Francisco faz referência explícita à arma, ao tratar das crises que afetam a humanidade, sendo algumas com causas mais explícitas e outras, não. E acentua, ao destacar as não perceptíveis: “Pensemos, por exemplo, nas guerras em diversas partes do mundo, na produção e tráfico de armas; nas centenas de milhares de refugiados que tentam escapar da pobreza, da fome e da falta de oportunidades; das mudanças climáticas.” Em seguida, o Papa Francisco se refere especificamente à crueldade do uso das armas, como instrumento de beligerância, ora justificado como meio letal de ataque e defesa: “Ao descobrirmos qual é o orçamento de um país para o gasto com armas, ficamos gelados. Se depois de compararmos esses números com as estatísticas da Unicef sobre as crianças sem acesso à educação, que dormem com fome, fica claro quem paga o preço dos gastos com armas.” E, com veemência, chega a essa grave conclusão: “O gasto com arma destrói a humanidade.” Esse desfecho do líder da igreja católica nos conduz à ilação de que a arma é um instrumento diabolicamente letal, que, na defesa ou no ataque, apenas destrói, desumaniza, haja vista que animaliza o ser humano, infectando-o do instinto de matar por matar. É o que se tem visto, nestes últimos e recentes tempos, de reiterados ataques às escolas, com assassinatos de inocentes crianças e de professores ou professoras.

Numa breve leitura que fiz no Estadão, na coluna do articulista e advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti – Sem Hobbes, vamos à guerra civil, p. A4, edição de 10 de maio de 2023, o autor do texto fala sobre Leviatã, de Thomas Hobbes, obra publicada em 1651, destacando o pacto em que é estabelecida uma forte origem do Estado e a aspiração pela paz. E, nesse trilhar de entendimento, o autor enfatiza que “no pacto social configurador do poder estatal, os indivíduos entregam sua liberdade irrestrita em troca da segurança proporcionada pelo Estado”. Nessa concepção hobbesiana, “o poder soberano é essencial para a sociedade sair do estado de guerra permanente, que inviabiliza o desenvolvimento coletivo e a própria conservação pessoal”. Nessa premissa o sentido que decorre do pacto que todos os indivíduos da sociedade fazem, ao construir o fundamento para o exercício do poder. Como decorrência, a paz a ser alcançado é de responsabilidade do poder público (o Estado), mas também de todos nós cidadãos. Daí a necessidade premente de renunciarmos do Estado de guerra. Não podemos aderir, apenas porque entendemos egoisticamente que estamos certos, sempre certos, a serem revividos os tempos em que se fazia justiça pelas próprias mãos. Do mesmo modo, não devemos querer que as instituições de Estado apliquem nossos critérios pessoais de julgamento, que, de modo egoístico, classificamos de os mais justos, portanto os que realizam, sob a nossa visão, a verdadeira justiça.

No texto do Estadão, o Dr. Nicolau Rocha Cavalcanti esclarece o ainda atualizado pensamento de Hobbes, embora originário do século XVI: “Como expôs Hobbes, o problema é que, quando todos querem fazer justiça com seus próprios métodos – quando se aceita a vigência de limites sobre a própria conduta, não há paz possível.” E, digo eu, não havendo essa paz, a guerra insensata é o caminho. Até mesmo um simples e recreativo jogo de futebol se transforma num campo de batalha, com agressões racistas, violência física, desrespeito às mais comezinhas regras de urbanidade. A recreação almejada se transmuda em disseminação do ódio contra um inimigo, que era apena um lúdico adversário. Abandona-se o pacto social da boa convivência. E o mercado da morte se dissemina no mundo. Na Ucrânia e vários rincões da terra, nos quais bastam que os estopins sejam acesos. Mário Sérgio Conte, jornalista da Folha de São Paulo, em sua coluna de 03/06/2023, intitulada A névoa da guerra, afirma que, só no ano passado, foram gastos U$$ 2,24 trilhões em armas, com 39% feitas pela indústria norte-americana. O 8 de janeiro deste ano, onde se constata um sério prenúncio de golpe de Estado, tendo à frente arruaceiros bolsonaristas, coadjuvados por outros interesses econômicos escusos, é a mostra de impor uma “justiça” particular, pelo inconformismo do vencido nas eleições presidenciais. Como símbolo maior desse desrespeito às regras, emerge a figura grotesca da deputada Carla Zambelli, travestida de uma pistoleira, para fazer prevalecer os seus próprios sentimentos de justiça pelas próprias mãos. Devemos voltar às lições de Thomas Hobbes e respeitar o pacto social que fizemos, com regras claras e cogentes na Constituição Federal.

* Membro da AML e AIL
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