MENU

13/05/2023 às 00h00min - Atualizada em 13/05/2023 às 00h00min

El Cid ou Al Capone?

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

 
Ante essa crucial pergunta, a dúvida me assalta. Ainda bem, porque, creio, é muito melhor ser assaltado pela dúvida que ser vítima de um assalto em nosso patrimônio físico ou moral. Mas vale a pena pensar sobre o significado da pergunta, neste mundo em que os mafiosos estão mais organizados do que o aparelho preventivo e repressivo do Estado. Sabemos que uma das precípuas funções do Estado, no transcurso de toda a sua história, como ente político, é manter a ordem, propiciando ao cidadão e cidadã a efetiva segurança. Esse entendimento era também do profeta do neoliberalismo Milton Fiedman, para quem tudo deveria ser privatizado, salvo a segurança. A partir concepção de Friedman, e para os mais radicais neoliberais, até a justiça deveria ser privatizada. E o Estado ficaria com o mínimo. Só o mínimo.

Na obra Violência, mas pra quê? do ensaísta, filósofo e professor alemão Anselm Jappe, faz o autor crítica contundente ao monopólio de força do Estado, que, nos tempos atuais, se transformou, num grave retorno aos seus primórdios, em “um bando armado”, tendo como denominador comum o exercício da violência. E, nesse pensar neoliberal, acentua o professor Ansel Jappe: “O Estado pode ocupar-se do bem-estar de seus cidadãos ou não; pode garantir a educação ou não; pode construir e manter infra-estruturas ou não; pode regular a vida econômica ou não; pode abertamente estar a serviço de um pequeno grupo ou de um único indivíduo, ou, ao contrário, afirmar servir ao interesse comum: nada disso é essencial.” Na sequência, conclui: “Mas um Estado sem homens armados que o defendam do exterior e que salvaguardem a ‘ordem’ interior não é um Estado.”

Como adverte Machado de Assis, na introdução de sua obra Papéis Avulsos, “a verdade é essa, sem ser bem essa”. Primeiramente impõe-se a pergunta, que insiste em não calar-se (vale o uso deste chavão): a sociedade organizada, da qual se origina o Estado, quer um Estado guerreiro, violento, militarizado, temido, transgressor, a serviço de um grupo de indivíduos economicamente ou militarmente fortes, ou tão só de um indivíduo, como vem ocorrendo durante o curso da história e até mesmo a contemporânea? Quer-se um Estado democrático de direito, em que as instituições funcionem sob a regência de um sistema legal, alicerçado numa Lei Maior, historicamente instituída nos albores das lutas pela afirmação dos direitos fundamentais? Ou quer-se um Estado, em regime democrático formal, apenas para fazer de contas, ou um Estado construído e firmado numa democracia representativa, na qual o voto represente as desejadas aspirações da cidadania que escolhe o parlamentar ou a parlamentar? Essas são questões que vão bem além dessas querelas ideológicas, despossuídas de racionais fundamentos. E ainda se pergunta: É certo e faz parte da atividade estatal promover ou contribuir no incentivo da guerra, como fez e vem fazendo os Estados Unidos da América, a exemplo do ocorreu no Vietnã, Iraque e, agora, na Ucrânia? Essa sua função de Estado envolve a de policial do mundo? Alguns poderão redarguir: e a Rússia pode adotar essa criminosa conduta? A resposta é de uma simplicidade acaciana: NÃO. Um Estado para ser Estado tem, como um dos seus fundamentais requisitos, gozar de soberania interna, porém respeitar a soberania dos demais Estados.

A Rússia, pela atitude beligerante e criminosa, como ocorreu com a Alemanha na 2ª Guerra Mundial, em que tentou impor pelo mundo afora o seu funesto regime fascista, no contexto internacional de convivência, deve sofrer restrições de ordem econômica, porém não é certo, para atender à indústria armamentista, uma das pilastras do sistema capitalista, incentivar a guerra, pondo em perigo a vida na Terra, em vista do uso, dada a imprevisibilidade, quanto aos seus resultados catastróficos, de armas nucleares, a exemplo do que ocorreu no Japão, quando o uso de duas bombas, ainda em fase embrionária de destruição, matou em minutos milhares de seres humanos. E ficou para história, como exemplo de insensatez e crueldade. Uma lição que não foi aprendida pelos Estados e povos beligerantes, que continuam a recorrer às armas mais letais para matar.

E por que El Cid e Al Capone? Às vezes, o mundo é composto de aventureiros e mafiosos. El Cid era um aventureiro espanhol, cujo nome era Rodrigo Diaz de Bivar (ou Vivar) – uma espécie de free lancer, pondo a sua espada e agilidade de matador a serviço de quem o pagasse. Essa personagem fez muito sucesso na tela dos cinemas. Salas cheias. Épico, estrelado por Charlton Heston, no papel principal, e Sophia Loren, como a musa Jimena, o amor de El Cid. Mais perto do nosso tempo, Al Capone, mafioso dos Estados Unidos. Praticou inúmeros e variados crimes, mas só foi condenado pelo delito de sonegação fiscal.

É de todos conhecidos, pelos filmes e pelas histórias lidas e ouvidas, que a sonegação fiscal, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, é um crime de natureza tributária, com o uso de meios ilícitos para evitar o pagamento de impostos ou taxas. Al Capone, além traficante e assassino, era sonegador, porém não deixava rastros nas suas práticas delitivas, razão pela qual só foi possível processá-lo e condená-lo pelo crime de sonegação fiscal, retirando-o da vida criminosa.

Eis uma síntese desses dois personagens.

Não sei se Bolsonaro é Al Capone, embora tenha algumas características bem semelhantes, como práticas de rachadinha, atentado ao Estado de Direito, enriquecimento sem causa, apropriação indébita de joias sauditas, a presença da figura sombria de Queiroz, etc. etc. etc. O Cid emerge, em toda essa história, na figura do tenente-coronel Mauro Cid, flagrado agora com a acumulação de milhares de dólares, além de, por uma cativante vantagem, ser o faz-tudo de Bolsonaro, até na adulteração criminosa de dados em cartões de vacina do capitão e da sua filha, para que pudessem viajar para os Estados Unidos. Fatos esses constatados por investigação (ainda bem sem a participação do juiz corrupto Moro e seu braço direito Dallagnol) da Polícia Federal, assim noticiados: “Os elementos informativos colhidos demonstraram coerência lógica e temporal desde a inserção dos dados falsos no sistema SI-PNI até a geração dos certificados de vacinação contra a Covid-19, indicando que Jair Bolsonaro, Mauro César Cid e, possivelmente, Marcelo Costa Câmara tinham plena ciência de inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente.”

Tudo parece um nada. Mas não é. Lembremos da história do rei da Inglaterra Henrique VIII, que, por ter-lhe sido negado o divórcio pelo Papa, rompeu com a Igreja Católica e criou a sua própria igreja. Depois, como rei, havia quem cumprisse as suas criminosas ordens. Das seis mulheres do seu harém sucessivo, duas foram executadas, entre elas a, historicamente, conhecida Ana Bolena. Assim, aplicava o seu método - cruel e de eficiência instantânea - e evitava a burocracia do divórcio. Enfim, rei é rei. Nem El Cid nem Al Capone.

* Membro da AML e AIL
Link
Leia Também »
Comentários »