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06/05/2023 às 00h00min - Atualizada em 06/05/2023 às 00h00min

Prêmio Camões: o Discurso de Chico Buarque

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Quando Chico Buarque – esse grande mito da cultura musical e literária brasileira, de estatura artística universal, por ter atravessado todas fronteiras - completou setenta anos de idade, publiquei uma crônica (bem crônica mesmo), na qual trato de vários assuntos e finalizo, ao prestar homenagem à sua nova idade, a chamada idade da razão, sobretudo de um compositor, poeta e escritor talentoso, que, conquanto afirme no seu discurso, de recebimento do Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, tenha sido influenciado pelo seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, historiador e sociólogo, autor do clássico Raízes do Brasil, que o orientava indicando as obras a serem por ele lidas, além de julgar seus primeiros arranjos textuais que lhe eram submetidos a sua avaliação, ainda quando o ganhador do Camões dava seus passos iniciais, na construção da sua carreira literária, que veio a se consolidar e, em definitivo, amadurecer, com escolha no ano de 2019 para ser laureado com esse honroso prêmio.

A respeito desse grande poeta da arte e do pensar, comprometido com os problemas sociais e políticos do nosso conturbado mundo/Brasil/pátria amada, até por essa a essência, o sentido e a função da poesia, como o fizera Castro Alves com o seu célebre poema O navio negreiro, de 1868/1870 - “Era um sonho dantesco... O tombadilho / Que das luzernas avermelha o brilho, / Em sangue a se banhar. / Tinir de ferros... estalar do açoite... / Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dançar...” escrevi:

“Mas, a grande notícia é que Chico Buarque de Holanda fez setenta anos. E outra boa notícia: Chico não é mais unanimidade nacional. Ainda bem. Ser unânime, em nosso país, é um insulto. O melhor é ser odiado. Na Ilustrada, a Folha (16/6/2014) afirma que o autor de Olé, Olá, Carolina, A Banda, Pedro Pedreiro, Roda Viva, Olhos nos Olhos, Januária, Apesar de Você, Gota d’Água, Quem te Viu, Quem te Vê, Cotidiano, Construção e tantas eternas canções, não é mais unanimidade nacional, sendo odiado por muita gente. Essa feliz constatação decorre ‘da fartura de comentários negativos que podem ser lidos em sites noticiosos e nas redes sociais’ (na verdade, redes antissociais). Chico deve estar velho de feliz, já que ser odiado por essa gente é conseguir vencer os limites da burrice e alcançar a imortal consagração de chegar aos setenta com vigor artístico, alicerçado numa obra que não pode estar ao gosto dessa turba ignara, que não lê sequer a nossa festejada literatura de cordel. Ainda assim, conseguindo sobreviver-se a tudo isso, acende-se uma luzinha no fim túnel. É paradoxal, mas é possível.”

Dito isso, para que a memória dos esquecidos sai do túmulo da ignorância, transcrevo passagens dos fatos noticiados pela mídia: “Chico foi escolhido pela comissão julgadora do prêmio em 2019, mas o procedimento não foi concluído, porque o então presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, não quis assinar a documentação necessária. ‘Hoje, para mim, é uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi. Todos nós sabemos por quê’, declarou Lula. O diploma do Camões foi assinado nesta segunda em cerimônia em Sintra (Portugal) por Lula e pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e entregue a Chico Buarque em seguida.” E mais: “A entrega nesta segunda acontece na véspera do aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, movimento que pôs fim a uma ditadura de quase 50 anos em Portugal. A revolução é citada por Chico Buarque na música “Tanto mar”, de 1978, e foi lembrada pelo presidente português no discurso.”

Por ocasião da entrega dessa grande honraria a um brasileiro, que pôs a sua poesia na luta por uma sociedade humanizada, enfatizo a linha do pensamento do poeta Ferreira Gullar, ao dizer, no livro Autobiografia poética e outros textos, pp. 78/80, que “a poesia só poderá ter função no mundo moderno se ela falar dele, se se voltar para os problemas, as lutas e as perplexidades do homem de hoje. (...) acredito que só o corpo a corpo com a vida, a identificação com os problemas do povo, do homem comum, e a tentativa de levar a língua a abranger os mais prosaicos aspectos da experiência social poderão conduzir a poesia à altura do momento que vivemos”. Ressalto esta passagem da solenidade: “Lula afirmou a ‘negação’ das artes é um dos instrumentos usados por ditaduras, a exemplo do que ocorreu no Brasil e em Portugal no século passado. Para o presidente, o prêmio é uma resposta à censura.”

Na verve irônica, firmada no uso estético da palavra, que Chico sabe bem dela cuidar, assim conclui o seu histórico discurso: “Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.” Isso é mais que o bastante. Como já o dissera: Chico é Chico, além de Buarque de Holanda.

* Membro da AML e AIL
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