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29/04/2023 às 00h00min - Atualizada em 29/04/2023 às 00h00min

O Mundo Humano e Pós-Humano

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
O mundo humano - esse do qual fazemos parte e o integramos com todos os nossos sentimentos, desde a nossa rústica morada na caverna até a conquista da lua. Faço um relato bem resumido desse universo, já que ninguém é obrigado a suportar digressões sobre o evolucionismo de Charles Darwin:

Cheguei a um consultório médico. Várias pessoas – homens, mulheres e crianças – estavam acomodadas nas poltronas dispostas nas laterais da sala de espera. Cumpri o ritual da chegada. Fui até o balcão de atendimento. Identifiquei-me, esclarecendo que tinha uma consulta marcada. Adotadas todas as providências, sentei-me numa das poltronas e, pacientemente, aguardei a chamada.

Como sempre faço, levei um livro e o abri para continuar a leitura. Absorvi-me um pouco com a história contada pela romancista Christy Lefteri, criada em Londres, porém filha de refugiados cipriotas. Essa romancista vem fazendo muito sucesso com o seu segundo romance, O roubo dos pássaros, cujo enredo trata da vida da empregada doméstica migrante Nisha e de mais outras quatro e duas de suas filhas que desapareceram. Toda narrativa é processada por dois personagens – Petra e Yannis. Petra, a empregadora de Nish, e Yannis, o namorado da empregada desaparecida.

Estava atravessando a metade desse agradável e cativante romance. Isolei-me no meu canto de espera. Outros personagens foram participando da história contada por Christy Lefteri, como a menina Aliki, filha de Petra, e que ficou aos cuidados de Nisha desde o nascimento, como se fosse sua mãe, até o dia do seu desaparecimento. Costurou-se um forte elo materno entre Nisha e Aliki, que se projetou fora das páginas do romance e, como estivesse encarcerado em prisão perpétua, não consigo expurgá-lo do meu pensamento – Petra, Yannis, Nisha e Aliki. Fico, por isso mesmo, com a síntese final da autora dessa excelente narrativa, que me ajudou a ter paciência em uma sala de espera e a compreender a vida e a dor dos que sofrem. Diz ela: “É uma história sobre aprender a ver cada ser humano da mesma maneira como nos vemos.” Esse é o sentimento humano que ressai de toda a narrativa dessa história muito bem construída, que tive a ventura de, isolado, mas ao lado de outras pessoas, absorvê-la, em alguns momentos, sob a indiferença de todos aqueles que me rodeavam, estando concentrados na miragem individualista do mundo pós-humano.

Pois é desse mundo pós-humano. O mundo do ChatGPT. O mundo da artificialidade da vida. O mundo do indiferentismo. Da inteligência artificial, em que a máquina processa e nos entrega, prontas e acabadas, todas as soluções. Quero esclarecer que nada tenho contra esse mundo pós-humano. Terei que me acostumar ao seu materialismo. Beneficiei-me dele em alguns momentos. Mas ele é chato, frio, distante, mesmo antissocial, e mais algumas outras coisas que os psiquiatras, psicólogos ou psicanalistas podem um dia qualquer de curiosidade científica nos esclarecer, alertando-nos para dele migrar para outra vida, na qual se possa ver o sol nascer e se pôr, vislumbrar o brilho da lua e das estrelas.

Volto à sala de espera. Disse que me sentei numa das poltronas e peguei o livro que comigo levava e dei início à leitura. Passados alguns minutos, olhei em volta. Todos os demais lugares na sala ocupados. Homens, mulheres e uma criança de braço, bem próxima ao pai, e, ao lado, uma mulher, de fisionomia ainda jovem.

Todos que aguardavam a chamada para consulta estavam absortos no celular. Um ou outro aparelho transmitia a mensagem de voz como os antigos serviços de alto-falantes que existiam nos nossos bairros, no tempo em que os aniversários natalícios e os avisos fúnebres eram divulgados para conhecimento público, além das músicas que faziam sucesso, como as de Orlando Dias, Carlos Gonzaga, Anísio Silva, Waldick Soriano, Ângela Maria, Nora Ney e tantos outros astros da nossa canção popular. Só que as mensagens desses celulares, além de estridentes, são de uma chatice perturbadora.

Mas... O que me chamou a atenção não foi a rotina desse novo mundo, ou o abominável mundo novo. O que me chamou a atenção foi o casal e a criança. Ou pelo menos supus, dada a proximidade física, que se trata de um casal. A criança entre os dois. E a mulher – quiçá a mãe – de cabeça enterrada no celular, numa atitude de presença física e de total ausência. O homem – suposto pai – sentado, ereto, enquanto a suposta mãe num outro mundo, o mundo virtual, o distante mundo em que a presença é sinônimo de ausência.

Lendo o filósofo Slavoj Zizek, que escreveu um texto no site A terra é redonda, sob o título O deserto pós-humano, consta esta conclusão: “A humanidade está criando seu próprio deus ou diabo. Enquanto o resultado não puder ser previsto,uma coisa é certa. Se algo semelhante a essa ‘pós-humanidade’ emerge enquanto um fato coletivo, nossa visão de mundo perderá os três de seus sujeitos definidores e sobrepostos: humanidade, natureza e divindade.” Em resumo: não podemos perder a nossa humanidade. Essa humanidade exige convivência, solidariedade, coletividade, diálogo, amor, sob pena de morrermos, embora materialmente vivos.

* Membro da AML e AIL
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