MENU

11/03/2023 às 00h00min - Atualizada em 11/03/2023 às 00h00min

A rua

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
A rua é estreita, mas comprida. E Íngreme. No fim, um descampado, de pura terra batida, contendo espaços argilosos. Nesse agradável espaço, as crianças e os mais velhos do bairro se encontram ao cair da tarde e nos fins de semana, para jogar bola, no jogo dividido: dois ou três de um lado, e o mesmo tanto do outro. E a bola de borracha a rolar nos pés dos mais hábeis, ou de contestada habilidade. Havia a barreira, formada pela turma da espera: os times no banco espera a aguardar a saída do perdedor para entrar na disputa. Nesse descampado, praticavam-se outras espécies de brincadeiras, como empinar papagaio e jogar bolinha. É campo lúdico, dos grandes encontros e de festa da turma de sempre!

É uma rua típica. E com pessoas típicas, que gostam de sentar à porta para conversar. Depois, recolhem-se para fazer a janta, retornando mais tarde, pela noite, quando prosseguirão na conversa iniciada no decurso de todo o dia. O cotidiano da vida é detalhado nos mínimos detalhes. Quem namora quem; quem não conseguiu pagar a conta do quitandeiro; a vizinha que pulou a cerca; enfim, as coisas corriqueiras e as mais complicadas.

Como facilmente se deduz, fala-se de tudo. Até mesmo da vida alheia.

Nesse caminhar, o pensamento anda, ao andar por essa rua. Pensa-se andando. Vai-se andando pensando. Vêem-se as pessoas. Também se imaginam as pessoas. Seus problemas. Dificuldades. A amizade. Os encontros e desencontros. Multiplica-se o amor acima das desavenças. Não chega a ser uma rua fraterna, porém se aproxima muito dessa possibilidade. Há, sim, essa possibilidade de ser fraterna. Por isso, a fome é expurgada pela solidariedade. O vizinho passa sempre pela cerca de pau a pique, ou de varinha, um prato de comida, que ajuda nessa necessidade vital e amenizada com amor.

Surgiu – a rua - no perder do tempo. De uma velha e antiga quinta. Uma casa aqui, outra ali. Depois enfileirou-se. Os quintais foram perdendo espaço. Diminuindo. De cerca de varinha para muro. Ainda assim, as pessoas insistem em se amar. Compreendem-se.

A rua, como qualquer personagem da vida ou da criação ficcional, subjetiva, vai morrendo, ou as pessoas vão morrendo. Não é a mesma. Ela morre com as pessoas, e as pessoas morrem com ela. Há uma certa reciprocidade vivencial e de morbidez fatalista, que descamba para o fim fraticida.

D. Deja, uma das suas primeiras moradoras. Dizem muitos que a conheceram. Casa de palha. Lugar ermo. Pouca gente morando. Mais adiante, um cajueiro a despejar a sua sombra, onde, nas tardes de sol, costumam, para matar o tempo, alguns moradores, conversar, recebendo no rosto o vento forte que ameniza o calor escaldante.

Duas filhas. Uma mais nova que a outra. Claro. Não são gêmeas, embora se pareçam muito. Fruto da sua convivência com um grande cantador de bumba-meu-boi. Casa de chão batido e porta de meaçaba. À noite, vendia frutas até certa hora. Já um pouco tarde olhou pro rumo do cajueiro, lá estava pastando um burro de um carroceiro da proximidade. Noite clara. O reflexo da lua clareava bem. Sentada à porta, continua a aguardar algum freguês. Nada. Casas distantes uma das outras e separadas pelo mato. Caminho de chão de terra, feito pelo pisar do transeunte e dos animais.

Mais tarde, volta a olhar pro rumo do cajueiro. No lugar do animal, um caixão de defunto. Aperreia-se. Toma pé da situação. As meninas dentro da casa, no primeiro sono. Entra, põe as coisas pra dentro. Fecha a porta de meaçaba. E começa a ouvir um barulho lúgubre que se aproxima da casa. Junta-se em proteção às filhas. Reza a Deus e a todos os santos. Pede amparo. O barulho cada vez mais forte se aproxima da casa, como se tivessem arrastando alguma coisa muito pesada. O chão treme. Agarra-se às meninas. E a coisa pesada, arrastada e barulhenta vai passando. O corpo treme. O medo é contido na defesa e proteção das filhas.

          A rua é assim. Cheia de mistérios, como sua gente. De encantos e desencantos. Mais tarde, também de desencontros.

          Dela ficaram esses sentimentais versos, que contam um pouco da sua alma, tão humana quanto qualquer um de nós:

          Nela, tantos risos e tantos choros.
          Nela, tantas gentes, tantas vidas, tantas e tantas mortes.

Tantas histórias alegres e tristes.
No contraste do errado e do certo.
Do amor e do ódio. Do nada e do ser.

* Membro da AML e AIL
Link
Leia Também »
Comentários »