MENU

17/10/2020 às 00h00min - Atualizada em 17/10/2020 às 00h00min

No mato sem cachorro

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Pois é, estamos vivendo momentos inusitados. Não me refiro à tão decantada e explorada corrupção, que faz parte da história do Brasil, desde aquele célebre ano de 1.500. De lá pra cá, as riquezas rolaram em abundância, com muita gente considerada boa amontoando em sacos, sacolas e cuecas alguns milhares de cruzeiros, cruzados ou reais. A mais recente façanha dessa economia doméstica veio a público, como sempre ocorre, de maneira bem efusiva, com destaque em todas as mídias, quer as de direita quer as de esquerda, ou mesmo aquelas que não estão nem num lado nem no outro. Pegaram em flagrante (ainda não sei se em delito) um senador da República, cujo nome nos faz lembrar um daqueles cantores dos tempos idos, que cantavam, com paixão avassaladora, aquelas canções bregas, que embalavam os sonhos dos mal-amados. Nome do indigitado parlamentar: Chico Rodrigues, do DEM-RR e vice-líder do governo federal no Senado. E, segundo o presidente Jair Bolsonaro, em declaração dada em redes sociais, seu veículo de comunicação preferido, o senador flagrado com dinheiro escondido na cueca, é seu velho amigo (até aí tudo bem), mas faz esta afetiva ressalva: “É quase uma união estável, hein Chico”, enfatiza o presidente. 

Por sua vez, Chico Rodrigues afirma, com a corriqueira ênfase bajulatória, que Bolsonaro “está retomando a moralidade, as práticas republicanas” e o agradece pelo “patriotismo e a luta em defesa dos princípios e valores da família” De logo, independente da união estável, foi destituído da vice-liderança do governo, com direito à edição extra do ato no DO da União. Esse senador, guardião dos valores da família (dele), deve dar as devidas explicações, porque devotou tanto cuidado com o dinheiro, que teve a coragem antisséptica de esconder a polpuda grana na cueca; talvez, quem sabe, porque se trate de uma indumentária que se agasalha no recôndito íntimo do corpo, onde só os curiosos têm acesso.

Em nota ao respeitável púbico, o senador do dinheiro na cueca, fez estas ponderações que têm o poder metafísico de o transformar no demônio que a mídia conservadora pintou para um anjo com todas as beatitudes transcendentais. Transcrevo parte final dessa sua manifestação de pureza: “Digo a quem me conhece: fique tranquilo. Confio na justiça e vou provar que não tenho nem tive nada a ver com qualquer ato ilícito. Não sou executivo, portanto não sou ordenador de despesas e, como legislativo, sigo fazendo minha parte, trazendo recursos para que Roraima se desenvolva. Que a justiça seja feita e que, se houver algum culpado, que seja punido nos rigores da lei.” Confiar na justiça é absolutamente natural, apesar de todas essas confusões epistemológicas que estão a sombrear de dúvidas a nossa Corte Maior de Justiça, o STF. A questão mais crucial é o senador afirmar, com toda veemência, que vai provar que não teve nada a ver com qualquer ato ilícito. Fico aqui conjecturando. Dinheiro encontrado numa mala, ainda vai. Debaixo de uma cama, pode ter alguma explicação, a depender do seu dono. Dentro de uma geladeira, a gente até tem uma certa racionalidade de crer que, para o sujeito não entrar numa fria, resolveu esfriar as cédulas. Enfim, nesses lugares, embora com frágeis justificativas, o senador pode ir se safando muito bem. Afinal, uma união estável se sustenta na afetividade. Ainda mais: é a velha história da rachadinha, do dinheiro depositado na conta corrente da madame. Tudo isso vai passando. Mas... ai deles todos, se fosse um triplex. Aí a condenação é certa. Mas o que me preocupa é como o senador irá provar os motivos razoáveis que o levaram a esconder toda essa quantidade de grana na cueca. Eh!, pode ser... 

Por todas essas estripulias, insisto obsessivamente em reiterar que estamos vivendo um momento com situações inexplicáveis. Não só pelo dinheiro na cueca do senador, que ele afirma que provará a inocência. Agora vivemos e convivemos com o insólito conflito intercorpore no Supremo Tribunal Federal. O Ministro Marco Aurélio deferiu um pedido de habeas corpus e soltou um famoso e perigoso traficante: André do Rap. E o fez com fundamento no art. 316, $ único, do Código de Processo Penal e nos termos do que dispõe a Constituição Federal (art. 5º, inciso LVIII). 

O § único do art. 316 do CPP, gambiarra do famoso pacote anticrime, diz o seguinte: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).” Como alerta o comentarista de TV: a regra é clara. Não cumprido o procedimento, a prisão deve ser relaxada e o habeas corpus concedido. O Ministro Fux, que ora preside o STF, entendeu diferente, recorrendo a uma hermenêutica que inclui como óbice a periculosidade do paciente do HC, e deferiu um pedido de suspensão e cassa a decisão do Ministério Marco Aurélio. O mundo veio abaixo. A insegurança jurídica volta a sombrear a nossa Corte Suprema. Surgiram, no mundo jurídico, manifestações contra e a favor. E o jurisdicionado o que pensa a respeito? Penda que bandido tem estar na cadeia ou morto. Pode ser, mas nem sempre é. Há leis que devem ser cumpridas. Nos Estados Unidos, a sua Corte Suprema lavra as suas decisões, interpretando, em nome do povo, a Constituição, de mais 200 anos, ou por um consenso dos seus juízes, ou por maioria. São nove os integrantes da Corte. E as suas decisões são fielmente cumpridas. Nixon foi, por determinação da Suprema Corte, foi obrigado a entregar as fitas do Watergate, que o levou à renúncia. Aqui... Ah!, aqui... Ameaça-se o Supremo de intervenção. E fico o dito pelo não dito. Continuamos no mato sem cachorro.
Link
Tags »
Leia Também »
Comentários »