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18/02/2023 às 00h00min - Atualizada em 18/02/2023 às 00h00min

Falência da Cultura: morre a catedral dos livros

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
A notícia do decreto de falência da Livraria Cultura consternou todos aqueles que têm amor aos livros. De fato, como enfatizou Saramago, prêmio Nobel de Literatura, ao se referir à Cultura como uma majestosa livraria, deu-lhe o nome de a catedral dos livros. A decisão judicial, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Estado de São Paulo, destaca a importância da Cultura, que, no ano de 2018, fez o pedido de recuperação judicial, por ter uma dívida de R$ 285,4 milhões de reais. No curso do procedimento recuperatório, uma concessão legal às sociedades empresárias, em grave desequilíbrio econômico-financeiro, para que possa cumprir suas obrigações declaradas ao juízo de recuperação e volte a operar no mercado com a mesma pujança econômica quando suas finanças se encontravam sadias. Mas a Cultura, essa catedral dos livros, que se destacava como ponto de referência na Avenida Paulista, em São Paulo, não superou as dificuldades, não restando a alternativa a não ser declaração de sua falência.

Nos fundamentos da decisão que decretou a falência da Cultura, diz o magistrado: “É notório o papel da Livraria Cultura, de todos conhecida. Notória a sua (até então) importância, e não apenas para a economia, mas para as pessoas, para a sociedade, para a comunidade não apenas de leitores, mas de consumidores em geral. É de todos também sabida a impressão que a Livraria Cultura deixou para o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, que a descreveu como uma linda livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz e bela. Mas a despeito disso tudo, e de ter este juízo exata noção desta importância, é com certa tristeza que se reconhece, no campo jurídico, não ter o Grupo logrado êxito na superação da sua crise.”

Uma pena e um sentimento de perda para todos nós que amávamos a Livraria Cultura, por tudo que ela representava no mundo dos livros. Tantas e tantas vezes que chegava a São Paulo, a primeira visita de lazer a ser feita era ir à Cultura, com suas prateleiras e mesas vistosas e alegres, estrategicamente arrumadas, a nos possibilitar uma visão cativante e amorosa dos autores e autoras e títulos de cada obra. E sempre encontrávamos alguma novidade, ou mesmo dezenas de novidade. No retorno para casa, a bagagem teimava em engordar, dadas as aquisições que nos punham num frenesi de logo iniciarmos a desejada leitura.

Senhor magistrado da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais,de São Paulo, essa decisão da sua lavra e prolatada “com certa tristeza”, como V. Excelência faz questão de dizer, também nos deixou, e aos que conheço, bem tristes. A mim – apesar de iniciarmos o ano de 2023 com novos ares, em que pese o oito de janeiro – a tristeza me perturbou de tal maneira, que, em protesto (isso no bom sentido), fiquei, numa espécie de autoflagelação, vinte e quatro horas sem botar os pés, esses cansados pés, na minha biblioteca. E ruminava: - Uma catedral de livros, como a Livraria Cultura, que matou a fome de muitos leitores e atendeu aos pedidos mais inusitados, não pode falir. Isso não deixa de ser um insulto e um tormento para nossa cultura, sobretudo quando se trata de uma aconchegante livraria, onde até a lanchonete nos ajudava a, tomando um café e comendo um pão de queijo, meditar sobre o novo livro de crônicas de Fernando Sabino, ou de Antonio Prata.

Ainda assim, não me conformei apenas com o meu ato solitário de protesto caseiro. Fui adiante. Com falência ou sem falência, a Cultura ficará na minha memória, que anda um pouco enfraquecida pelos esparsos esquecimentos, até porque, ao ler o livro de crônicas de Coelho Neto, Canteiro de Saudades, esse maranhense, ao falar da memória, diz que “a memória é o campo santo da lembrança, cemitério espiritual onde jazem em sagrado os despojos dos dias idos”. A Cultura ficará eternizada no campo santo das minhas lembranças e de tantos outros leitores que a tinham como o paraíso turístico do vasto mundo do conhecimento.

Resta apenas prestar a última homenagem póstuma à Livraria Cultura, que, segundo a Folha de São Paulo, já está tendo as suas prateleiras esvaziadas pelas editoras que fazem do livro apenas um produto de consumo, sem conceder-lhe a relevância cultural. Mas, lá bem atrás, em 1870, em Espumas Flutuantes, o grande poeta condoreiro, Castro Alves, assim poetizava seu canto:

 
“Oh! Bendito o que semeiaLivros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!”

A Cultura semeou livros. De todas as essências, preferências e qualidades. E semeou com os livros a felicidade.

* Membro da AML e AIL
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