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11/02/2023 às 00h00min - Atualizada em 11/02/2023 às 00h00min

“E no entanto é preciso cantar...”

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
 “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”

“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração.”
(Vinícius de Moraes, em Samba da Bênção,
em parceria com Baden Powell)

Vem chegando o carnaval. Ou, pelo que se vê por aí, já chegou com toda pressa Depois da pandemia da Covid-19, que matou e maltratou muitos foliões, e que, por isso mesmo, os sobreviventes ficaram escondidos no recôndito de suas casas, é preciso vestir as fantasias, por a máscara da folia, sair pelas ruas e avenidas da cidade, porque, como diz o poeta Vinícius, “mais que nunca é preciso cantar / É preciso cantar e alegrar da cidade”. É o que todos devem fazer: cantar e alegrar a cidade, ainda que vestido de um pierrô apaixonado que vivia só cantando, mas, por causa de uma colombina, acabou chorando. E a colombina, não muito a fim, além de mandar o pierrô cacete tomar sorvete com o arlequim, entrou no primeiro "butiquim", bebeu, bebeu, saiu assim, assim.

O carnaval tem sempre dessas coisas. E amor de carnaval pode deixar o apaixonado num estado de lamento, só remediado com muito porre. Porque esse amor efêmero desaparece na fumaça, e saudade efêmera é coisa que dá e passa. A marcha carnavalesca não deixa dúvida sobre esse sentimento transitório. Mas, o mais certo é que todos se deem as mãos e saiam dançando pelo salão. Tudo mesmo é artificial: os beijos, o sorriso de estar juntos e o amor passageiro.

No início desse meu fulionismo saudoso, como se fosse uma citação introdutória, fiz o destaque de uma das mais célebres frases do poeta dos amores Vinícius de Moraes, além de três versos que compõem a letra do Samba da Bênção, que o poetinha fez em parceria com Baden Powell. Uma espécie de samba em forma de oração, em que o Vinícius inicia a prece ao samba com este belíssimo verso: “É melhor ser alegre que ser triste...” Porém, ressalta que o samba tem beleza e tristeza, senão, não se faz um samba não, “porque o samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / A tristeza tem sempre uma esperança / De um dia não ser mais triste não”. Essa esperança poética é de todos nós, sobretudo quando o amor é de carnaval.

Mas, o carnaval tem todos esses sonhos, essas alegorias, essas passagens estigmatizadas pela transitoriedade. Ciente da sua chegada, estou um tanto arredio para recebê-lo com todas as pompas, como já o fiz antes, em outros carnavais, vestindo-me de rei ou de mendigo, dependendo da esperança ou da tristeza. Do confete, da serpentina, do banho de pó, do rodó, das fantasias mais burguesas e requintadas às mais pobres e de um ridículo burlesco.

Poetas têm a mania efêmera de cantar o carnaval. Dois o cantaram. Um, na acepção de um sonho, e o outro, como do fim do sonho. Chico Buarque faz a ode do Sonho de um Carnaval, e, na primeira estrofe dessa belíssima canção, ele contrapõe o carnaval e o desengano, embora tenha brincado, gritado e, vestido de rei, vem a quarta-feira e desce o pano. O sonho do carnaval também está na morena que o deixou sonhando: de mão na mão, pé no chão / e hoje nem lembra não / quarta-feira sempre desce o pano. É o sonho de um carnaval, ou mesmo de todo carnaval, para que o amor de gente longe viva na lembrança.

Por sua vez, poeta Vinícius de Moraes, em parceria com Carlos Lyra, faz a Marcha de Quarta-Feira de Cinzas. Um canto de saudade do carnaval que acabou e “ninguém ouve cantar canções / ninguém passa mais / brincando feliz / e nos corações / saudades e cinzas / foi o que restou (...) e no entanto é preciso cantar / mais que nunca é preciso cantar / é preciso cantar e alegrar a cidade”. E, na última estrofe, a saudade da quarta-feira não é só do carnaval que passou, mas de outros velhos carnavais: “Quem me dera viver pra ver / e brincar outros carnavais / com a beleza / dos velhos carnavais / que marchas tão lindas / e o povo cantando / seu canto de paz / seu canto de paz.”

Os dois poetas cantam o carnaval sonhado e de saudade. A esperança que gente longe viva na lembrança, que gente triste possa entrar na dança e que gente grande saiba ser criança. Mas é preciso cantar. Cantar e alegrar a cidade. E tristeza que a gente tem deve acabar. Se voltar, faz parte do sofrer. Todos vão sorrir. A esperança vai voltar. É o povo que dança, contente da vida, feliz a cantar.

Esses carnavais, do sonho e da saudade, estarão presentes nesses dias de folia. É o samba do morro e das nossas favelas, que traz o sonho e a esperança de viver, distante dos pesadelos das balas perdidas que assassinam os filhos e filhas dos favelados, e isso a nos lembrar o grande clássico de Luís Antônio e Oldemar Magalhães: Barracão de Zinco, que canta todo sentimento humanístico dessa gente sofrida: “Ai, barracão / Pendurado no morro / E pedindo socorro / À cidade a seus pés / Ai, barracão / Tua voz eu escuto / Não te esqueço um minuto / Porque sei / Quem tu és / Barracão de zinco / Tradição do meu país / Barracão de zinco / Pobretão infeliz... / Ai, barracão / Pendurado no morro / E pedindo socorro / Ai, a cidade / A seus pés / Barracão de zinco / barracão de zinco.” Tudo é carnaval, dizem os mais ufanistas. Carnaval do sonho, da saudade, do amor passageiro, do canto e do cantar, do barracão de zinco, do morro e da cidade, da avenida iluminada, das ruas pobres, esburacadas e, na quarta-feira, desce o pano. O efêmero canto da folia vira, como um rito de mágica, na realidade: o sonho acaba a esperança, e a saudade se vai.

* Membro da AML e AIL
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