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31/12/2022 às 00h00min - Atualizada em 31/12/2022 às 00h00min

Sem delírios militaristas

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Antes de iniciar a conversa que teremos sobre o tema do título acima, quero desejar a todos e a todas meus votos de um Ano Novo bem diferente e mais agradável do que o velho 2022, que está partindo sem deixar saudade. Não pelo resultado das eleições, cuja votação popular levou para os nossos parlamentos novos deputados federais e estaduais, e senadores. Do mesmo modo, para os governos estaduais e para presidência da República. O pleito expressou o amplo exercício do processo democrático, prevalecendo, pela atenta vigilância e aplicação das leis e da Constituição Federal, as justas decisões dos nossos tribunais superiores – Supremo Tribunal Federal, Tribunal Superior Eleitoral e todos os Tribunais Regionais Eleitorais -, para que se chegasse ao final das eleições, com o resultado natural que decorre de toda disputa em que há vencedores e vencidos. E tudo isso sendo o reflexo constitucional do Estado de Direito, assegurado pelas garantias previstas na Carta da República e pela democracia brasileira, consignada nessa mesma Carta, na qual prevalece o princípio maior da soberania popular, que nada tem a ver com esses delírios patológicos militaristas, que insistem em equivocadamente entender que as Forças Armadas – Exército, Aeronáutica e Marinha – são poderes constituídos, assim podendo, ao seu talante, intervir, quando lhes deem na telha, e em desacordo com o que prevê a Constituição Federal. Já disse aqui que as Forças Armadas são armadas, mas não são Poderes Constituídos, e só podem intervir, em qualquer situação, por determinação, e nas situações constitucionais, por convocação dos Poderes Constituídos, para essa finalidade: o Executivo, por quem o esteja chefiando, o Legislativo e o Judiciário.

Para reforçar esses argumentos, recorro à lição do mestrando em Direito pela UNB, Marconi Moura de Lima Burum, expressada no texto, publicado no Brasil 247, em 23 de dezembro de 2022, intitulado de O Art. 142 não é maior que o Art. 60; ou a traição! Esse jurista presta os didáticos esclarecimentos que se seguem: “A Constituição do Brasil traz em seu rol de entrada, a saber, no Art. 1º, a sentença fundante a dizer claramente que isto aqui é um “Estado Democrático de Direito”. Ora, não são apenas três palavras soltas. Há significantes e significados em ‘Estado’, em ‘Democrático’ e em ‘Direito’. (E aconselho uma pesquisa mais profunda sobre estes termos, tanto na gramática linguística, quanto na política e jurídica. Por hora, iremos estender nossa impressão noutro avançar.) O dizer a partir do Art. 1º da CF-88 tem a finalidade mesmo de chegarmos a este texto dentro do mesmo Diploma. Leiamos: ‘Art. 60. / § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: / II - o voto direto, secreto, universal e periódico’. Deste dispositivo, sem pestanejar, é possível depreender um princípio magno da soberania popular em cuja semântica constrange tudo mais que se possa pensar no ferimento à democracia.” Portanto, acrescento e reforço que deve ser deixado claro, como o brilho incandescente da luz do sol, que qualquer intervenção das Forças Armadas, como ocorreu em 1964, sem seguir as determinações cogentes, ou seja, por convocação dos Poderes Constituídos e, desse modo, reconhecidos como Poderes, é golpe, imposição de regime autoritário, como se dá em qualquer outro Estado ditatorial, a exemplo da China, de Cuba, da Rússia e de outros que estão semeados no mundo inteiro, sobretudo na América Latina, como ainda  recentemente se viu a frustrada tentativa de implantação de ditadura no vizinho Peru.

Apenas para consolidar os argumentos até aqui expostos e se possa entender que o Brasil, numa interpretação equivocada sobre o que seja poder, no curso de sua história, vem sendo vitimado por golpes sobre golpes, perpetrados por seguimentos das Forças Armadas, que transformam a caserna num nicho partidário e adotam a postura de salvadores da pátria. Nesse sentido, Fabio Victor, na sua recém-lançada obra Poder Camuflado, os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro, assim se manifesta: “Nos últimos quatro anos, graças à aliança entre o chefe do Executivo e representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, operou-se em escala inédita a politização das Forças Armadas e a militarização do governo. Num precedente temerário para a democracia, oficiais exerceram cargos políticos enquanto ainda estavam na ativa, confundindo suas carreiras de Estado com as funções no governo. Um deles, o general Eduardo Pazuello, foi nomeado ministro da Saúde e liderou a operação desastrosa do País no combate à pandemia de covid-19. Demitido, mas ainda general da ativa, subiu a um palanque com Bolsonaro. A transgressão não foi punida pelo comando do Exército, corrompendo os principais pilares da doutrina militar, hierarquia e disciplina.” Ao serem corrompidos esses fundamentos básicos da organização militar, com previsão constitucional e, por conseguinte, impositivos, tem-se uma evidência da disfunção das Forças Armadas, com forte coloração política.

Todas essas questões tratadas em o Poder Camuflado, também constituem tema central do livro Comentários a um delírio militarista, de Manuel Domingos Neto. Esse autor afirma que, em face dessas distopias, admitidas como uma espécie de credo doutrinário pelos “patriotas bolsonaristas”, agora travestidos de terroristas, a defenderem o golpe militar, com o uso de artefatos de alto poder destrutivo, há, no seio das Forças Armadas, contradições, caracterizadas pelos latentes conflitos de interesses; portanto, há no seio dessa instituição, posições partidárias, facções e militares. Cita, para tanto, declarações prestadas pelo almirante Mário César Flores, que afirma que, em 2018, oficiais generais estavam organicamente envolvidos com a candidatura de Jair Bolsonaro. Esse envolvimento partidário e político tem força destrutiva de corroer o regime democrático, desconstituindo o que, a duras penas, a cidadania brasileira conquistou nas lutas travadas para derrubar a ditadura de 64. E não foi fácil. Foram mais de vinte anos em que a soberania popular foi cassada e o país era governado por generais, todos, com alguma exceção, incompetentes, além de, nos Estados da federação, os governadores biônicos, escolhidos a dedo pelos oligarcas, donos do poder e cumpridores de ordem da hierarquia militar.

A soberania popular, na qual se fundamenta a democracia, deve prevalecer. Sem tergiversação. Vamos entrar 2023 consagrando em definitivo o Estado de Direito, a Democracia e a Constituição Federal, como a lei maior a ser cumprido. E sem delírios militaristas.

* Membro da AML e AIL
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