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03/12/2022 às 00h00min - Atualizada em 03/12/2022 às 00h00min

Roda Viva

“Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu”

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

 
“A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva /E carrega o destino pra lá...” Pois é, meus escassos leitores e leitoras, esses belíssimos versos são de Roda Viva, uma canção que, no meu equivocado conhecimento, sempre tive a absoluta certeza de que era (ou ainda é?) de autoria do poeta, compositor, romancista e cantor Chique Buarque de Holanda, o mesmo que fez outras grandes obras musicais, que continuam a desafiar o nosso bom gosto para ouvi-las sempre e continuamente. Mas, como dizem os dois primeiros versos acima: “Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu”, e a gente estanca de repente, ou foi então o mundo que mudou de repente. Deve ser isso mesmo. Quando se vê um jovem, filho de um militar, armado até os dentes, sair dando tiros a esmo e assassinando filhas de famílias e professoras, e, depois, dessa fúnebre façanha nazista, de doentio extermínio, encontrar-se com os seus pais e almoçar calmamente, como se nada tivesse acontecido, o mundo não só estancou de repente, mas deu passagem para os espíritos malignos, como o do sujeito que esbordoou, com todo instinto de crueldade, um homem negro, por conceber ser a vítima um insignificante morador de rua. E se fosse? Quem lhe outorgou o direito de espancar moradores de rua?

Tenho olhado o mundo com perplexidade. E cada vez mais, fico perplexo com as coisas que vêm acontecendo. Já sofro, e muito, em face das ideias conservadoras e de extremado fundamentalismo. Há os idiotas da objetividade que nem sabem o que é comunismo e afirmam, com absoluta certeza de sua verdade, que fulano ou sicrano está no inferno porque é comunista. Comunista passou a ser o slogan desses idiotas, que nunca leram, nem em ABC resumido, Marx. Desconhecem totalmente o pensamento filosófico, sociológico e econômico desse grande pensador alemão, que ele próprio dizia: “Eu não sou marxista.” Como aconselha Denis Collin, na obra resumida Compreender Marx, “...compreender Marx não é resumi-lo em algumas teses prontas para a vulgarização, mas seguir passo a passo um procedimento essencialmente crítico”. A sociedade vive e continua vivendo seu antagonismo, representado pela luta de classes, como bem esclarece Domenico Losurdo, em A Luta de Classes – Uma História Política e Filosófica – Boitempo Editorial.

Mas deixemos essas questões de lado. Aos poucos, nos nossos encontros semanais, se Deus assim permitir, voltaremos a elas.
O que me leva à música Roda Viva, acima citada, até então, indiscutivelmente de Chico Buarque? Respondo. Tomei conhecimento da decisão de uma juíza de Direito, de uma das comarcas do Estado do Rio de Janeiro, que, numa disputa judicial, entre o autor de A Banda e um dos diletos filhos de Jair Bolsonaro, a magistrada extinguiu o processo, sob este sucinto e inusitado fundamento: “A ausência de documento indispensável à propositura da demanda, qual seja, documento hábil a comprovar os direitos autorais do requerente sobre a canção “Roda Viva”, é causa de inépcia e de indeferimento da inicial…” Isso a querer dizer a douta MM. Juíza que Chico Buarque não provou ser o autor da música Roda Viva. Sem maiores delongas, num trâmite processual em Juizado Especial Cível, indeferiu o pedido inicial e extinguiu o processo.

Algumas pessoas de bom senso não gostaram, entre as quais me incluo. Fatos são fatos. E, quando os fatos são notórios, não há necessidade de prová-los. É o óbvio ululante, como dizia Nelson Rodrigues, alertando aos desavisados. Roda Viva tem uma existência notória desde os anos 60, porquanto “na noite de 21 de outubro de 1967, eu, adolescente e amante da música, estava em frente a um velho aparelho de televisão, atento à apresentação dos finalistas da segunda edição do Festival da Record e, consequentemente, ao anúncio dos vencedores, feitos pelos mestres-de-cerimônia Sônia Ribeiro e Blota Júnior. Ponteio, de Edu Lobo e José Carlos Capinan foi a vencedora. Classificaram-se em segundo, terceiro e quarto lugares, respectivamente, Domingo no parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque) e Alegria Alegria (Caetano Veloso).” (Irlam Rocha Lima, do Correio Braziliense). Ademais, Roda Viva, segundo dados do Ecad, está entre as 13 músicas mais regravadas de Chico Buarque, com 67 gravações cadastradas. Em vista da sua musicalidade teatral, em 1968, foi encenada no Rio, e o elenco da peça foi espancado em São Paulo pelo Comando de Caça aos Comunistas, uma organização nazista que servia à repressão da ditadura de 1964.

O jurista e escritor Lenio Streck, como faz sempre, não ficou calado, escreveu um excelente texto em Migalhas, publicado em 22 de novembro, posicionou-se criticamente: “...mesmo que até as pedras saibam que a música ‘Roda Viva’ é de Chico, assim como a Nona Sinfonia é de Beethoven, a juíza se esmerou e ‘superou’ a ‘tarifação da história institucional da música’. E decidiu como quis. Ela não gosta de Chico. Mas eu adoro (aliás, isso já deu música do Chico: Você não gosta de mim, mas sua filha gosta)!” E mais adiante Streck dá o xeque-mate: “Não há fatos, diria a juíza. Só há interpretações. Com isso, é possível até dizer que o 7 a 1 que levamos da Alemanha não ocorreu. Eis um caso de negacionismo epistemológico.” O certo é que esse negacionismo jurisdicional, por pura ignorância ou de forte eflúvio ideológico, deixará o filho do Bolsonaro, o Eduardo, sossegadíssimo em Catar, palitando os dentes e rindo às escâncaras, até que o recurso seja julgado. Além da infinita tristeza de quem zela e respeita o Direito como fato social, uma perda preciosa de tempo e mais uma decisão que serve apenas para aumentar a estatística produtiva do Poder Judiciário.
 
* Membro da AML e AIL
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