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22/10/2022 às 00h00min - Atualizada em 22/10/2022 às 00h00min

Velhas lições

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Rousseau, o grande pensador iluminista do Século XVIII, que passou a sua vida construindo o seu pensamento filosófico na luta pela liberdade, tanto que considerava a propriedade privada como geradora da desigualdade, deixou esta lição sinterizada nesta frase: o ser humano é bom por natureza; é a sociedade quem o corrompe. Essa frase, uma premissa do seu pensamento, que se projetou no tempo e atravessou os séculos, expressa a vida desse genebrino, cheia de aventuras, dificuldades e conquistas, quase uma espécie de autodidata, nascido em 1712, já órfão de mãe, que morrera em consequência do parto.

Suas principais obras são: O discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens; Contrato social; Julie ou a nova Heloísa; e Emílio ou da educação. Rosseau foi calvinista de nascimento, embora, em algum momento de sua vida, tenha aderido ao catolicismo. Foi um pensador polêmico, que teve o fundamento da sua filosofia na busca constante pela liberdade. E, no século em que viveu, estudou, pensou e escreveu, defendendo como essência da liberdade a educação pública. Ou seja: pugnou com insistência pela necessidade, como peça básica para formação dos Estados burgueses - isso em pleno Século XVIII - a instituição de uma qualificada educação pública. As suas ideias iluminaram a Revolução Francesa, edificada nos postulados da liberdade, igualdade e fraternidade.

Aí se tem uma velha lição, em processo de esquecimento. Da Revolução Francesa para os nossos conturbados dias, estamos a vivenciar o terror, ora estruturado em discursos mentirosos, ora na propagação de armas, como instrumentos educativos de combate à violência, e, o pior, no uso nefasto para prática de assassinatos. O que restou da Revolução Francesa? O terror de Ropesbierre, que, com os aplausos daqueles que antes o reverenciavam, foi decapitado por seus algozes que tanto os defendia e doutrinava pelos seus arrebatados discursos, na sua ânsia de fazer prevalecer o Terror.

O filósofo Fulton Sheen dizia que uma coisa é fazer a revolução – pacífica ou armada; a outra é implementar as suas ideias. Isso a nos dizer que revolução não é apenas o ato de se revoltar, mas realizar as suas ideias, em benefício do ser humano, a essência da sociedade.

Na apresentação do livro de Fulton Sheen, Justiça e Caridade, retira-se esta humanística e necessária lição: “Desde a Revolução Francesa a sociedade dividiu-se entre direita e esquerda quanto à política. Mais de dois séculos se passaram e em nossos dias continuamos a ver a mesma divisão: direita e esquerda; burguesia e proletariado; liberalismo e socialismo; capitalismo e comunismo. Esqueceram-se os homens da Verdade e, mais do que nunca, passaram a guiar-se por ideologias. A Igreja, no entanto, guiada pela Verdade e pela razão, nunca se deixou enganar por ideologias, sejam de esquerda ou de direita, e traz-nos a luz pela qual podemos encontrar um caminho justo e generoso. Este é o caminho que Fulton Sheen nos mostra neste livro: um caminho baseado na justiça e na caridade, um caminho que busca banir os males do capitalismo, pela justiça, e o vício do comunismo, pela caridade. Sua proposta é que nos guiemos por essas virtudes para encontrarmos um sistema econômico equilibrado. ‘No meio está a virtude, sendo os extremos vícios’, diz Aristóteles.

Li Fulton Sheen ainda quando estudante de direito. Depois Rousseau, Montesquieu e outros grandes iluministas, que contribuíram para retirar o mundo das trevas, a se avizinharem outra vez.

Mas outra velha lição fui encontrar no historiador Paulo Rezzutti, na sua obra Independência, a história não contada – A construção do Brasil: 1500-1825. Vê-se que o título do livro provoca algum suspense. Algumas coisas não nos foram ditas. Esconderam-nas de nossa ingenuidade patriótica. Rezzutti, ao referir-se ao Brasil de 1822, 1821 e 1820, destaca a força das elites regionais, ainda bem fortes. Vejamos o que diz: “Em 1822, como em 1821, 1820 e, retrocedendo, até 1500, não existia um Brasil coeso, uno: existiam ideias locais, das elites regionais, a respeito do que elas achavam ser bom para si e, por consequência, para o povo. Diferentemente da população brasileira, essas elites eram majoritariamente brancas e faziam parte da minoria livre, numa sociedade nascida e criada sobre a base econômica da escravização de outros seres humanos.” E conclui Rezzutti: “Essa herança, até os dias de hoje, causa marcas e consequências no Brasil.” Essas marcas e consequências, não há dúvida, estão crivadas a ferro e brasa na desigualdade de nossa sociedade, defendida e imposta com todas as suas forças pelas nossas elites.

Talvez o grande Belchior, cearense que viveu todas as intempéries nordestinas, como grande poeta que foi, tenha expressado essas marcas num dos seus versos: “Não preciso que me digam de que lado nasce o sol.” Simples, sem muita filosofia, a realidade nua e crua está bem aí diante de cada de um nós. E o sol continua nascendo para testemunhar que elite é elite e pobreza é pobreza. Pergunta-se: o que já foi a educação pública em nossa pátria amada? O velho Liceu era disputado por ricos e pobres, com prevalência dos primeiros. Era um modelo de ensino. Quem quisesse uma educação privada, havia umas poucas escolas, como Rosa Castro. Mas as nossas meninas da elite preferiam a Escola Normal à outra instituição privada. Não é isso mesmo?

Volto ligeiramente a Belchior: “Por isso cuidado meu bem há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós (…) Minha dor é perceber / Que apesar de termos / Feito tudo, / Tudo que fizermos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como nossos pais.”

Pois é. Como nossos pais. Elitistas, escravistas, egoístas, fundamentalistas, idolatrando mitos, por interesses anticristãos. Rousseau deve estar louquinho da vida e da morte dos seus ideais, que foram tão caros no rompimento com as trevas de um tempo, que se acreditava não mais voltar.

* Membro da AML e AIL
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