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08/10/2022 às 00h00min - Atualizada em 08/10/2022 às 00h00min

Mentiras/Verdades

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Vivo ou vivemos no meio desses tormentos éticos: mentir ou dizer a verdade. E esses tormentos me atacam num momento conflitante das eleições desse nosso Brasil tropical, descoberto por acaso, em 1500. Estou como um daqueles índios, perplexo e absorto, nu, a contemplar, com os pés fincados na areia e o arco e flecha entre os braços pintados de urucu, aquele homem paramentado, com o corpo totalmente coberto, ajoelhado ante a cruz e a rezar a primeira missa. A carta de Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, traduz o que os historiadores assim a chamam: “É o documento que relata o encontro entre dois mundos, a certidão de nascimento do Brasil. Neste relato, Caminha descreve a fauna, a flora, o clima e a paisagem humana da terra recém-encontrada. O deslumbramento do autor é evidente, assim como sua preocupação em agradar ao soberano português, D. Manuel I, a quem a carta é dirigida.” E mais: Na carta, Pero Vaz de Caminha mostra como foi o primeiro encontro entre os portugueses e os indígenas: “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram.” (...) “A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador.”

Essa descrição da Carta de Caminha pode ser verdadeira, porém o escrivão da frota estava emocionado e, assim, deslumbrado, ao fazer o relato desses primeiros contatos com os nativos ao rei D. Manuel I. Mas a história não o desmente. Há outros fatos históricos que, já de agora, são negados pelos estudiosos, pois repletos de fantasia. É o caso da Independência do Brasil, que, até pouco tempo, se ensinava que bastou a proclamação de D. Pedro I - Independência ou Morte – e o Brasil estaria definitivamente separado de Portugal. Não foi bem assim. Houve províncias que se rebelaram e se posicionaram fiéis aos portugueses.

O historiador Hélio Franchini Neto, autor do livro Independência e Morte: Política e Guerra na Emancipação do Brasil – 1821 – 1823, edição kindle, faz esses esclarecimentos quanto à resistência à luta emancipatória: “No Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Cisplatina e Bahia (que representavam parte significativa do território, população e economia do Brasil), além de pontos espalhados por todo o Reino, houve lutas que se iniciaram com cores locais e afunilaram, por pressão externa, na opção entre Lisboa ou Rio de Janeiro. Nesses pontos, o conflito desembocou  na guerra.” E ainda esclarece: “Boa parte do Brasil, desse modo, teve de ser unida ao novo Império  pela negociação, pela força ou pela combinação das duas. Essa parte  não ‘aderiu’ à Independência: foi conquistada pelo e para o Império. A  força e a violência estiveram presentes em todo o período 1821-1822, e  foram peça importante na manutenção da unidade.  (...) É preciso  abandonar, ou ao menos relativizar, o mito da Independência pacífica.”

Há verdades e mentiras. Ou mais mentiras que verdades. Muitos fatos, ainda que não históricos, trafegam nessa fronteira. Tanto que dizem, sem fazer qualquer ressalva, que todo político, para alcançar os seus fins, mente. Luiz Felipe Pondé, um filósofo muito controvertido, num dos livros, em determinado momento afirma que “mentir no dia a dia funciona em alguma medida”, e acrescenta – pasmem! – “às vezes, é até falta de educação falar a verdade o tempo todo”. Dimenstein faz a seguinte indagação a Pondé: “- Você está dizendo que a mentira é uma condição humana e necessária?” Resposta: “Estou dizendo que a mentira também está presente. (...) Se alguém diz a verdade o tempo todo, é uma pessoa insuportável, desumana, que não é capaz de compor, de fazer acordos no cotidiano.” O que quer dizer o filósofo é que a verdade nem sempre é aconselhável, e a mentira pode ser um recurso ético contemporizador dos interesses.

Cortella, o pop star Mario Sergio, entra nessa conversa e faz a distinção entre ser sincero e ser franco. E diz que sinceridade significa que tudo que dissermos tem que ser verdade; franqueza é dizer a verdade, de forma circunstancial. O que o faz concluir: “Quero dizer que a capacidade de saber circunstanciar a conduta é decisiva, o que não pressupõe a adoção da mentira como regra, mas como possibilidade.” Nessa dimensão semântica ou filosófica, a verdade e a mentira dependem das circunstâncias, que podem originar a possibilidade da mentira. Sobre essa grave questão, consultei o meu falecido avô. Ele se manteve irredutível, balançando a cabeça em absoluto protesto, que deduzi, quanto à possibilidade circunstancial de optar-se pela mentira. Mas... Cada um faz da mentira a verdade que bem entender. E cada um acredita nessa verdade, a depender da possibilidade de fazer da mentira a sua verdade circunstancial. Mentira e verdade se interagem, a depender apenas da possibilidade de uma travestir-se na outra. É uma questão de escolha. E não de ética.

* Membro da AML e AIL
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