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30/07/2022 às 00h00min - Atualizada em 30/07/2022 às 00h00min

A carne é forte, o espírito é fraco

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Há uma passagem bíblica que afirma o contrário: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus, 26.41) Desse ensinamento cristão, fez-se esta redução, para, na relação cotidiana, pudesse haver um entendimento menos fundamentalista, afastando-se das concepções dogmáticas meramente religiosas. E aí concebeu-se a seguinte frase: a carne é fraca, e o espírito é forte. Ou seja: os pecados ou os desvios de conduta decorrem da fraqueza da carne, por conta da natureza humana que possui fragilidades, induzindo as pessoas às práticas de ações que infringem as normas éticas, religiosas e jurídicas.

Lendo, de passagem, o livro Cotidiano, de Walter Duarte, autor que desconhecia, encontro esta afirmação, que foge do dogma bíblico: “Eu acho que a carne é forte, o espírito é que é fraco.” Pensando bem, examinei com um certo cuidado essa contraditória concepção, cujo sentido inverte os valores, concebidos a essa máxima cristã, que o apóstolo Mateus deixou para aqueles que são seguidores de Cristo, o filho de Deus, ou o Deus vivo que se fez homem. Ora, pois, pois, parodiando os nossos patrícios, se, de fato, o espírito for forte, a carne, que sempre é fraca, ou, pelo menos, assim se deduz, porque ela é pó e ao pó voltará, não fraquejará diante das tentações terrenas. O espírito, sedimentado pela fé, resistirá. Mas, se o espírito for fraco, não há carne forte que resista. Que o digam os abstêmios, no momento das tentações, que são tantas neste mundo cada vez mais tentador, a partir das triviais cenas novelescas das nossas televisões, nas quais o ato sexual, tradicional e conhecidíssimo de todos os viventes, desde o pré-nascimento, falta a ele só um  tiquinho de nada para os jovens, as jovens e as circunspectas crianças terem uma ideia perfeita da sua consumação, não só com a finalidade pedagógica do crescei e multiplicai,  mas como um meio normal de entretenimento, sem que sejam cumpridas quaisquer regras absurdas criadas pela enfadonha censura moral. Aí, meu digníssimo e digníssima amigo e amiga, é difícil saber-se quem é o verdadeiro fraco: a carne ou o espírito. Tenho uma certeza, que não tem caráter científico – trata-se tão só de mera elucubração -, mas longe de mim de assumir a hipocrisia de ser vestal, de visualizar que, do jeito que as coisas andam, não o espírito nem a carne, ainda que forte ou fraca, estar-se-á logo, logo, atravessando todas as fronteiras do sensato ou do insensato.

Mas, continuei a ler o e-book de Walter Duarte, composto de frases, com forte sabor de inteligência, não bem comum nos dias nossos, que estamos a viver nesta árdua travessia. E uma ou outra dessas sentenças me despertaram a curiosidade de citá-las e fazer algumas ligeiras ponderações, sem arrogar qualquer enfadonho resquício de intelectualismo. Passo a fazê-lo: “A conveniência da mentira como se fosse verdade, afasta a verdade, como se fora mentira.” Mentira e verdade, fenômenos próprios da vida humana, que se harmonizam e se conflitam, a dependerem dos interesses a serem almejados pelo mentiroso ou pelo dono da verdade. Anda muito difícil saber-se se o dito é verdadeiro ou não. A situação de incredulidade chegou a tal ponto que deram um sofisticado apelido à mentira: fake news. Denominação com todos os requintes contemporâneos da globalização. Todo o mundo sabe, sem ostentar qualquer leve dúvida, que fake news é uma mentira muito bem elaborada, disfarçada com a roupa da verdade. Tanto é assim que me encontrava num determinado ambiente, onde nele também se encontrava uma outra pessoa. Ocorreu então um pequeno e rápido diálogo. E essa pessoa disse que um padre fora vítima de uma agressão por parte um homem (ou um animal irracional, disfarçado de homem) desses que gostam de agredir ou matar. Mas ela concluiu, não deixando por menos e expondo a sua versão, ou aversão, investigativa e “ideológica”:  - Foi um comunista. E eu, perplexo, indaguei: Como? Donde veio? Da Rússia? Da China? A resposta ficou por aí mesmo. Ainda bem que Cristo foi crucificado pelos fariseus, que apregoavam a sua crença em Deus, e, na época, os comunistas ainda não haviam chegado ao mundo. Teve aqui no Brasil um tal de Luiz Carlos Prestes, que foi preso por uma das nossas ditaduras e que, para conseguir ser solto, teve o patrocínio de um advogado católico, aliás, terrivelmente católico, conhecido pelo nome de Sobral Pinto, que recorreu, nos fundamentos liberatórios do HC, à lei de proteção dos animais – gatos, cachorro, cavalo etc. E com reza ou sem reza, com oração ou sem oração, conseguiu o alvará de soltura do comunista, que deve ter ressuscitado e veio acertar as contas com o inditoso padre.

O interessante é que essa personagem, não o comunista Prestes e muito o Dr. Sobral Pinto, mas a outra pessoa, perguntada por alguém presente sobre os gastos do cartão corporativo do nosso capitão presidente, cujas despesas são realizadas em segredo, de chofre, respondeu que é pelo fato de ele não fazer gastos. Eis uma mentira conveniente, com foro de verdade. Suprimir esse antagonismo vai sempre depender do que se quer que seja verdade ou mentira.

Mais duas frases de Walter Duarte esclarecem esse fenômeno do mundo das contradições, onde, às duras penas, vivemos e sobrevivemos. Uma delas é: “O pessimista é tristonho; o otimista, enfadonho.” E outra é: “Nunca mergulhe fundo com pessoas rasas.” Na primeira, desponta a ideia de duas figuras radicalmente antagônicas: o pessimista e otimista. Cada uma delas cria um mundo ora sombrio, ora repleto de maravilhas. O pessimista tem suas graves complicações, até porque, se tudo estiver azul como o céu do amanhecer, sol brilhando de alegria, pra ele é nada. O sol não brilha e o azul do céu é cinzento. Já o otimista é – e não poderia ser de outra forma – a contradição do pessimista. Tudo pra ele está tão bom, que esse bom se transforma numa rematada alegoria de prazer e egocentrismo. Caminha sobre espinhos como se estivesse a atravessar um tapete mágico, acobertado de rosas sem espinhos. Para o otimista, pior do que comunistas (volto ao personagem de cima) são os consumeristas, que fazem da vida um eterno e feliz shopping center, ainda que devam os olhos da cara. Finalizo com esta distopia (palavra da moda), para dizer que o frasista, no fundo, no fundo, é só um frasista. Um bem-sucedido frasista. E, assim, livra-se da convivência com as indigitadas pessoas rasas, que têm a virtude de não mentir, mas também não dizem a verdade. São as perenes e inexplicáveis contradições. Nem Freud explica.

* Membro da AML e AIL
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