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26/09/2020 às 00h00min - Atualizada em 26/09/2020 às 00h00min

A LENDA DO BOTO: SALVADOR E MATADOR

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.


JERÔNIMO DE JOANA era  um legítimo afro-descendente. Filho de “Joana de Gi”, neto de Gil de Campos e  “mãe Carolina”, esta que apregoava com sua voz e sotaque afetados  que ainda pegou “uma pontinha da escravatura”. Também bisneto da velha Processa, que foi escrava de sol a sol e viu o marido atravessado por uma flecha de índioo. Viviam todos numa pequena comunidade de uns quatro ou cinco casebres, nas terras que, demarcadas e vendidas a terceiro, enlaçou os velhos e antigos quilombolas, sem dó nem piedade.

Jerônimo era, então rapaz de meia idade, um humorista nato. Tivesse tido uma alavanca na vida, poderia ter sido contemporâneo de um Chico Anysio, Costinha e outros da mesma cepa.  Tudo quanto dizia, proposital, tinha sabor de humor. Ele tanto sabia quanto provocava.  Eu que o conheci ainda na minha infância, sobre ele já escrevi vários textos, cada qual com o seu viés, sua leitura. Inspirado nos ditérios desse humorista da  beira de paupérrimo  fogão de lenha e  porteira de roça, é que escrevo agora este texto.

Eu deveria estar aos doze anos, concluída a primeira série ginasial, na capital, quando cheguei de férias, em casa, naquelas encostas de meio de mato e fim de caminho, onde só eventualmente passava alguém ou porque perdeu o caminho, ou porque procurava um animal fugido. Logo vi que em meio ao trabalhadores a serviço da roça de meu pai, estava JERÔNIMO DE JOANA,  “arranchado” em nossa casa. Houvera trocado dias de serviço por quilos de carne, consoante a prática da época naquele sertão sem escola publica, sem estrada, sem um posto médico e sem mais nada.

Eram uns três ou quatro trabalhadores. JERÔNIMO  pareceu-me o mais falante e chamava e me despertava a atenção. Dormíamos todos num cômodo que ali chamava-se “sala”, em redes atadas às paredes. Nas noites, à precária luz da lamparina, cada qual na rua rede, JERÔNIMO recitava de cor histórias de cordel; contava lendas e bravatas de Virgulino Lampião. A gente que não tinha nem rádio nem TV, nem luz elétrica. Tornei-me então, até onde ali ouvi, “fã” de Lampião, o cangaceiro do sertão nordestino. Numa dessas o nosso personagem contou o que mais tarde vim a entender como A LENDA DO BOTO – SALVADAOR E MATADOR.

Contava JERÔNIMO que se uma pessoa sofresse um naufrágio, em águas grandes  aparecia um BOTO e ajudava a pessoa a se salvar, deixando-o em terra firme, na praia, até que  lhe viesse alguém em socorro. Se a pessoa voltasse às águas e, novamente em perigo, o BOTO, novamente, ajudava-o a salvá-lo, deixando-o em terra firme. E se essa mesma pessoa, voltasse, novamente às águas e, novamente em perigo, agora era o BOTO que se encarregava da fatalidade.

Terminada a peroração e já com os circunstantes sonolentos, apagava-se a lamparina e aí vinha um ritual de despedida: Um dizia: “boi noite”; ouyro respondia “boa noite”; outro contra atacava: “com Deus passemo a noite” ; e outro concluía: “com Deus amanhicemo”. Eu, naquela altura, sem nada interferir ou perguntar, entanto, ficava me questionando duramente: “Como pode um BOTO salvar um pessoa, afastá-lo do perigo, deixá-lo em terra firme e o náufrago voltar ao mar em situação de risco”?  

Mais intrigando ainda, era, na minha mente o náufrago voltar às águas mais uma vez e até mais outra vez e neste caso, o BOTO que lhe serviu de um anjo de resgate, ele mesmo ocupava-se da fatalidade, do indivíduo. Eu aceitava de bom grado  o verbo de JERÔNIMO DE JOANA naquela versão  heróica e salvadora do BOTO, mas não conseguia assimilar o comportamento suicida do náufrago que, insistente, voltaria às águas, onde estivera à beira da morte.

Tantos anos se passaram e um dia me cai qual uma carapuça na cabeça,  a versão de JERÔNIMO, sobre o BOTO. É que um irmão mais velho adotou um irmão mais novo, em sua companhia. Pô-lo na escola, custeou os estudos e toda a sua vida. E o jovem irmão não queria nada com a vida. O mais velho insistia, catequizava e o mais novo, nem aí. Aí o irmão mais velho mandou o irmão mais novo, para os quintos de onde veio. Olha o BOTO, tentando salvar o náufrago e este um suicida escapando da terra firme e voltando às águas revoltas, da vida!

Ocorreu então que outro irmão, vendo aquela “devolução” daquele jovem náufrago, vestiu-se de BOTO, tomou as dores, resgatou o irmão mais novo e assumiu-lhe a paternidade com todos os encargos e todas as honras. Colégio particular, roupas de marca, curso de inglês, clube social, vida boa e tudo do bom e do melhor. OLHA O BOTO! Mas o rapaz era mesmo um náufrago suicida e ainda que colocado em terra firme com todo o conforto; apartamento com frigobar, mil e um  petiscos, TV e ar condicionado e até chuveiro de água quente como o de LULA na improvisada e incômoda carceragem onde estivera, tava nem aí. E, suicida, brincava nas ondas do mar revolto, em perigo, novamente. Aí o BOTO que cuidou de sua salvação, ele mesmo abandonou-o para sempre nas águas do mar da vida e devolveu-o aos “quintos”, de onde saiu.

Faz tempo quando escrevi sobre a LENDA DO OLHO DE BOTO, lembrei-me de JERÔNIMO DE JOANA, aquele afro descendente que, trocando dias de serviço por quilos de carne, nas noites contava histórias diversas, inclusive  esta que vem a ser A LENDA DO BOTO –SALVADOR E MATADOR.
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