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19/09/2020 às 00h00min - Atualizada em 19/09/2020 às 00h00min

Alterações na Lei dos Juizados Especiais

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


Estou jem Juizados Especiais Cíveis há alguns anos. O sistema de Juizados foi destinado à resolução de causas de menor complexidade. Com essa destinação de ordem principiológica, os Juizados Especiais trilhavam, desde a sua origem (CF, de 1824, art. 161), o caminho da simplicidade, informalidade e tinham como principal foco alcançar e atender o cidadão nas pequenas questões jurídicas, denominadas de menor complexidade. Como qualquer novo desafio, já que o seu tempo de vida alcançou a maioridade na prestação jurisdicional, houve percalços no caminho, mas a vontade de realizar dos juízes e juízas, atuantes e comprometidos com o sistema, fez dessa Justiça Especial um divisor de águas na história do Poder Judiciário brasileiro. Em conseqüência, os Juizados Especiais têm sofrido toda espécie de agressão distópica, objetivando descaracterizá-los, em vista do seu êxito, ou do êxito que vinha alcançando, sobretudo nas sessões conciliatórias obrigatórias, que demandam a aplicação de técnicas para solução consensual.

Durante esse longo tempo de vida - a Lei 9.099 tem vigência desde 1995 -, muitas das principais diretrizes dos Juizados Especiais vêm sendo abandonadas, transformadas e deformadas. Os critérios que devem orientar um processo que neles tramita – oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade – foram-se diluindo no curso do tempo. As conciliações, pedra de toque dos Juizados, no dizer Kazuo Watanabe, pois sem elas, perdem os Juizados a sua essencialidade, passaram a ser tratadas como um ato de passagem. E tempo de duração do processo, se fosse feita uma criteriosa pesquisa, perdeu o seu escopo de celeridade, deixando de atender a uma das garantias do cidadão brasileiro, prevista no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, que impõe como direito fundamental, e de forma isonômica, a razoável duração do processo, com a utilização dos meios que possibilitem a sua efetiva tramitação.

Integro o FONAJE – Fórum Nacional de Juizados Especiais -, órgão que reúne magistrados e magistrados de todo o Brasil para o debate dos mais pertinentes temas referentes aos Juizados. Confesso que tenho sentido os ventos “novos”, ou avassaladoras ventanias, que sopram de um lado para outro e têm a finalidade alterar substancialmente a prestação jurisdicional,  processada nesse sistema de demandas menos complexas. Também confesso que essas mudanças tão avançadas, originadas das forças dos Estados mais desenvolvidos, não têm sido do meu agrado. Tenho resistido, mas em vão. Lamento apenas que vivemos num país de extrema de desigualdade. Isso a nos alertar que Estados como Paraná, São Paulo, Santa Catarina representam outro mundo, raramente encontrando-se no seu território realidades tão indignas como nos Estados do Norte e Nordeste.

O que me preocupa? Serei breve e esclareço. No sítio do FONAJE, em postagem de um ilustre magistrado, amigo a quem devoto especial admiração, Dr. Erick Linhares, tomei conhecimento de um projeto de lei, em tramitação no Congresso Nacional, em fase final, no qual a Lei 9.099/95, é radicalmente alterada, com acréscimo de parágrafos ao seu art. 14. E o que traz de novidade? Simples, mas não tão simples. Passa a dispor que o pedido de indenização por dano moral somente será apreciado caso o consumidor prove que procurou os canais de atendimento da empresa ou outro canal de negociação ou mediação, antes da propositura da ação, e, ainda, fixa um prazo de atendimento de trinta dias, se houver resposta negativa. Desse modo, estabelece esse distópico projeto de lei (a meu sentir, inconstitucional) uma condição para que o consumidor, mesmo tido por vulnerável, e assim defendido pelo Estado (inc. XXXII do art. 5º da CF), possa pleitear o dano moral. Ora, pois, pois, nem CPC, uma lei extremamente formal, chegou a tanto absurdo. Aliás, deve ser dito que a Casa Grande, com o apoio do Congresso e da nossa elite, está destruindo os direitos do cidadão brasileiro. Um exemplo: a famigerada reforma trabalhista - Lei 13.467/2017 - está repleta de inconstitucionalidade. Uma delas é o art. 223-C,que faz tarifação do dano moral, ofendendo o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CF). A respeito, há ações tramitando no STF, e nossa Corte Constitucional está em silêncio. E o pior: essa proposta foi feita por um constitucionalista de fancaria: Michel Temer. A Casa Grande adorou.

E tem mais.

A alteração do art. 21 da Lei 9.099/95 passa a dispor que, nas ações judiciais, em que for admissível a autocomposição, e esta não tenha sido buscada na fase pré-processual, o juiz deverá submeter ex-offcio à plataforma pública ou privada de negociação ou de mediação. Disso decorre que a conciliação – até então obrigatória nos Juizados - deixará de existir, ou, se existir, perde a sua finalidade.  Em nosso Estado – e me refiro à capital dos azulejos, palafitas e pobreza em geral –, a Casa Grande vai dançar bumb-meu-boi de matraca, porque o cidadão ou cidadã compram produto ou contratam serviço, havendo vício que o torne impróprio ou inadequado para o consumo, já não mais recorrerá aos Juizados, embora esteja de frente à porta de um deles. Terá que buscar uma plataforma ou outro canal qualquer para solução. Não tendo êxito, virá ao Juizado para, apenas, o julgamento, perdendo a conciliação prévia nos Juizados toda a sua finalidade. 

Como facilmente se deduz, os tempos são outros. A porta da justiça está cada vez mais se fechando para o vulnerável. Justificam os adeptos desses novos tempos: é muita demanda, o brasileiro adora litigar, são mais de noventa milhões de ações, a assistência judiciária deve acabar. O Estado (no caso, o Judiciário) não suporta isso. Coitadinho! São necessárias outras alternativas. De fato, concordo. Que se construam alternativas viáveis. Porém, não obstáculos. Mas destruir os Juizados nas suas precípuas finalidades, isso não. O tema requer, e ainda é possível, se houver sensatez, um produtivo debate, no qual as vaidades devem ser postas atrás da porta e se possam preservar os direitos à ampla justiça do cidadão brasileiro. Os tempos novos também passam. E outras tempestades podem vir.
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