MENU

30/04/2022 às 00h00min - Atualizada em 30/04/2022 às 00h00min

A magia do tempo

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Não é bem do meu temperamento ficar de saco cheio. Saco cheio é um sentimento de absoluta aporrinhação com tudo que está em volta de si. O nosso pequeno mundo fica menor ainda. As pessoas assumem um tamanho físico e moral de total inexpressão. Os pigmeus se transformam num gigante. Ou somem. Quase desaparecem do nosso ínfimo mundo de ilusões. O amor empaca. E a utopia desaparece como se fosse um ato de mágica, ao tirar sonhos de criança da cartola. E agente passa a admirar e divertir-se com essa magia ora burlesca, ora tacanha.

Quando garoto, de seis sete oito ou dez anos de idade, acompanhei algumas vezes o palhaço de circo, para fazer jus à entrada gratuita. Era o esguio palhaço no alto da perna de pau, ostentando um rústico, mas necessário megafone,para anunciar o espetáculo, ou o palhaço troncudo, pintado da cabeça aos pés, que se rolava no chão, dando saltos mortais, arrodeado pelas crianças, que respondiam às provocações: - Hoje tem espetáculo? Tem sim senhor. – Oito horas da noite. – Tem sim senhor. - Então, arrocha negrada. E se ia pelas ruas estreitas, de aclives e declives, levando ao público a notícia de que o espetáculo seria realizado às oito horas da noite. O Circo Ibis, do palhaço Charuto, era o meu predileto. Ficava-se no poleiro, no degrau bem de cima. De lá, a tinha-se a visão completa do trapezista, do malabarista e das presepadas do palhaço, que contava sempre uma piada nova. No dia seguinte, na esquina, a pergunta era: - Sabe a última de Charuto? E a piada era repetida à exaustão, com as gargalhadas explodindo. Ninguém ficava de saco cheio. A vida era um saco vazio, que todos os dias tínhamos que encher de novidades. O circo era sempre essa novidade.

Pegava-se o bonde, e ele, preguiçosamente, ia devagar e divagando pelos caminhos retos, vencendo os trilhos que se estendiam em paralelo pela cidade. Apesar dessa caminhada preguiçosa, todos tinham a certeza de que chegariam ao seu destino, sentados, ou em pé no estribo. O cobrador era um malabarista, que se engalfinhava nos corrimões, nas suas estripulias para receber o dinheiro das passagens. Essas figuras históricas e homéricas, de uma sociedade quieta na sua sublime quietude, de sol a sol, faziam esse malabarismo circense na ida e na volta. O riso enfeitava-lhe o rosto. A rotina não os deixava de saco cheio. Pelo contrário, depois do motorneiro, o comandante que guiava o bonde com segurança e maestria, era o cobrador a autoridade máxima daqueles trajetos, tilintando as moedas, ao passar o troco com extrema agilidade. Acima deles, estava o fiscal, que surgia do nada, em pontos estratégicos, para conferir se o serviço estava sendo feito com presteza e exatidão. Tudo isso simbolizava a vida sem saco cheio. Aliás, deve ser dito, o único saco cheio, para alguns privilegiados, era, no final do ano, o do Papai Noel. Mas sempre a depender de quem era o felizardo ou a felizarda, a quem o saco era destinado a esvaziar.

Como disse acima – e sem pedantismo -, não costumo ficar de saco cheio. Quando ele – o saco – começa a encher, procuro uma saída, que me possibilite esvaziá-lo, antes que seja tarde. Atravesso uma passagem secreta que está dentro de mim, e me acomoda nesse mundo mágico, de sonhos e utopias e da alegria de pensar que sou uma espécie renascida de Luís XIV, sem a vocação do absolutismo do Rei Sol, ou me fantasio de Madre Teresa de Calcutá, e me dano, nesta encarnação da bondosa freira, a fazer coisas que a fertilidade do pensamento ajuda a construir. Sou capaz, atendendo o mandamento de Cristo, de amar, caso o tivesse, o meu próprio inimigo.

Ou ainda, num ato de desprendimento poético, esquecendo momentaneamente o garoto que alegremente pegava o bonde ou acompanhava o palhaço do circo, recorro à imensa poeta, do Ceará do meu avô, Cecília Meireles, e encontro em Retrato alguns traços do que fora e que já não é mais. Todas as contradições de um mundo, que vão se superando. Esta cearense de Romanceira da Inconfidência nos diz: Eu não tinha este rosto de hoje, / assim calmo, assim triste, assim magro, / nem esses olhos tão vazios, / nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / tão paradas e frias e mortas; / eu não tinha este coração / que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança, / tão simples, tão certa, não fácil: / - Em que espelho ficou perdida / a minha face?

Nesse canto poético, Cecília Meireles retrata o tempo de todos nós: as mudanças, o passado, a outra vida, a nova vida, a outra face, que ficou perdida em outro espelho. Um modo de resistir ao tempo. De vencer as mudanças do mundo e da vida. De superar as incertezas, as dúvidas, os fracassos, e encontrar-se consigo mesmo, como se é: olhos vazios, o vazio do mundo, o coração triste, a certeza da incerteza. Mas jamais de saco cheio. Apenas sentir o sentimento do mundo.

* Membro da AML e AIL
Link
Tags »
Leia Também »
Comentários »