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26/03/2022 às 00h00min - Atualizada em 26/03/2022 às 00h00min

Nosso drama de cada dia

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Esses dias a chuva têm sido uma companheira constante. Ela nos visita ora pela manhã, ainda no raiar do dia, ora pela tarde, ora pela noite, ou no curso da madrugada. A mim não incomoda. O respingar intermitente é um lenitivo. Mas outros, em situação de precariedade, sentem essa presença que invade o aconchego da sua morada. Goteiras, trovoadas, lamas, aguaceiros, destruição do pouco que têm. Enfim, enormes vicissitudes, contaminadas pela ocorrência de algumas tragédias. Vive-se cada um de nós o nosso drama, sendo personagem dessa dor, cujos atos dessa peça são escritos por nós mesmos. Bem criança, tive amigos que moravam em palafitas. Maré cheia, e de lua, como diziam, tocava, sob o furor de sua insensatez, no piso de tábua das rústicas casas, cobertas de palha. O amigo na escola, aprendendo o necessário para sobreviver como personagem desse drama. E mãe na labuta diária da fábrica – Santa Amélia, Cânhamo, Fabril e algumas outras, que ainda subsistiam para dar guarida a esses trabalhadores, que saíam de casa, ainda bem cedo, com chuva ou com sol, às 5h da manhã, para trabalhar dez ou doze horas por dia, sem direito a horas extras e sem um salário definido. Havia, como continua havendo até os nossos dias, uma resistência em reconhecer o trabalhador como trabalhador, e não como escravo. Getúlio, por ter procurado olhar essa classe, que não tinha sequer jornada de trabalho, teve que dar um tiro no coração. Na época, com sete anos de idade, presenciei o choro da minha avó, empregada de fábrica, do meu pai e de outras pessoas. Choravam a perda de um governante, que teve a infelicidade de instituir normas de proteção ao trabalhador brasileiro.

O tempo passa. Quase nada mudou. Continuamos a mesma luta contra a voracidade do ganho exorbitante dos grandes grupos econômicos. Não conseguimos extirpar os vícios exploradores da Casa-grande. E a Senzala se encontra visivelmente nos sinais de trânsito, em cada esquina, em todos os rincões dessa nossa pátria amada. Se alguém tiver a insensatez de opor resistência, as forças reacionárias, que vivem declaradamente o estigma do escravismo, movem os seus tentáculos e logo essa resistência é tachada de socialismo, comunismo e outros epítetos, que servem de amparo e arma para expurgar aqueles que têm o topete de lutar por uma educação libertadora, por um trabalho digno, pela humanização da vida de todos nós.

Recentemente, adquiri uma obra jurídica do ministro do STF, Luiz Edson Fachin – Direito Civil. Sentidos, Transformações e Fim -, um estudo bem consistente e profundo. E algumas lições por ele professadas refletem meu pensamento, quanto ao sentido do Direito. Primeiramente, ao justificar o sentido do texto, ora condensado no referido livro, esclarece que “este texto não trata, pois, do Direito Civil no fim. Trata, isso sim, do fim do Direito Civil. É, enfim, um texto sobre a vida, limite e início de tudo, fim de todos.” Mais adiante, faz esta necessária observação: “A premissa é direta: compreender o Direito não é apenas uma operação mecânica, antes é um diálogo permanente entre seres humanos que não deve cessar jamais.” A bem da verdade, o Direito não é meramente um produto estatal, até porque essas produções normativas são frutos de interesses particulares, opressivos, que, na maioria das vezes, representam a expressão e a vontade de grupos dominantes, que, na democracia, operam, de forma direta, na eleição dos parlamentares. Essa é uma questão, que deveria ser amplamente discutida nas escolas de ensino fundamental e, acima de tudo, nas universidades. Mas não é.

De fato, o ministro Fachin toca num ponto essencial: o Direito não é apenas uma operação mecânica. Origina-se de um permanente e inesgotável diálogo entre as pessoas que integram a sociedade. Portanto, o Direito é vida. Não é dinheiro. Não é economia. Não é estatística. Não é lucro. Não é ordem unida. Não é apenas a norma criada pelo legislativo, que se efetiva na interpretação a ser dada, dialeticamente, pelo Poder Judiciário. Em conclusão, embora não definitiva: o Direito é vida. É elaborado pelo ser humano; é feito pelo ser humano e para o ser humano, e não o ser humano foi feito para o Direito, como pensam alguns desavisados aproveitadores.

O Direito é também decorrência da divergência, já que é construído por via de um processo dialético. Como ensina o ministro Fachin; “Nele, desenvolvimento legítimo, exclusão social inaceitável, justiça imprescindível e segurança jurídica necessária acordam juntos à mesa e ainda com gosto amargo de um dia cujo sol não amanheceu para todos.” Quem aplica o Direito e objetiva fazer a Justiça cumpre a missão de, como se fosse uma máquina humanizada de ressonância magnética, examinar, estudar, sentir e viver o drama da realidade humana com todas as suas injunções originárias de um sistema secular, que ainda não extirpou do cotidiano brasileiro a Casa-grande e muito menos a Senzala. Somos secularmente escravistas – o nosso drama de todos os dias.

* Membro da AML e AIL
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