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12/09/2020 às 00h00min - Atualizada em 12/09/2020 às 00h00min

É Tarde?!...

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]


É tarde. Precisamos todos nós despertar. Os poetas precisam despertar. Os músicos precisam despertar. As mães, os pais e os filhos precisam despertar. As famílias unidas ou dilaceradas pelas contradições precisam despertar. A vida precisa ser despertada. Precisamos fugir dessa pandemia. A morte precisa ser momentaneamente adormecida, acometida de uma letargia ainda que simbólica, porquanto passageira e paradoxalmente eterna. Devemos ruminar os nossos sonhos, sem renunciar às nossas utopias. Sonhos de amar. Utopia de ser feliz. O poeta condoreiro de Vozes d’África canta a chegada da noite para a amada: “Boa noite, Maria! Eu vou-me embora / A lua nas janelas bate em cheio. / Boa noite, Maria! É tarde... é tarde... / Mas não me apertes assim contra teu seio.” E conclui o vate baiano: “Como negro e sombrio firmamento, / Sobre mim desenrola teu cabelo... / E deixa-me dormir balbuciando: / - Boa noite! – formosa Consuelo.” No eflúvio desse cântico lírico, só nos resta irmos embora pra Pasárgada, porque lá somos amigos do rei e teremos a mulher que se quer na cama que escolhermos. Ou devemos viver o presente e esperar com forte esperança o futuro. O som tardio da madrugada nos desperta, embora se durma o sono incompleto da incerteza. É tarde. O futuro, como o vento forte, que assobia vindo das nossas matas, está passando. Passou?, eis a dúvida! Pouco sentimos. Somos passados, sonhando o futuro incerto. Os caminhos, por onde caminhamos, estão ornados de flores. São ipês amarelados ou roxos, dispostos de cada lado dessa trilha procelosa, com disposição para embelezar o viver transitório. É tarde. Desçamos de nossa soberba, dessa vaidade fugidia, de sermos apenas nós mesmos, para, sob a sombra escassa dos ipês, apararmos as pétalas dessas frágeis e fugazes virtudes, pedaços de cada vida.

É tarde. Os cinemas ainda estão cheios?! Filas para compra das entradas. A ânsia dos jovens aos gritos trocando figurinhas do álbum da moda e das velhas revistas em quadrinhos. Cavaleiro Negro. Zorro. Fantasma, o Espírito que Anda. Flecha Ligeira. Superman. Roy Rogers. Durango Kid. Mandrake, o mágico dos mágicos. Quem tem, quem não tem. Dois por um. Um por três. É tarde. Lá vem o bonde cansado, arrastando-se em cada pedaço de trilho, mas com vontade de chegar, para atrapalhar a festa desse improvisado escambo. O sonho logo se desfaz. É passado.

Lá se vem o tempo para atormentar a vida. Ainda não é tarde. Os filhos são preparados para o mercado. Vive-se o futuro. Todos são reféns desse exigente tempo. O futuro é o presente em roda de movimento nos impulsionando para um espaço que vem chegando e chegando. Sempre chegando. Não há tempo para o presente. È tarde. Sigamos para o infinito, enquanto há tempo.

A manhã é de sol. A manhã é de chuva. Chuva fina. Torrencial. Quase sem chuva. É tarde para o sol. É tarde para chuva. É tarde para vida. A prisão é uma sala hermética na qual se respira um ar mecânico, que retira o prazer da naturalidade do oxigênio praiano que inalamos. É tarde. A vida está inatural. Dolorosamente inatural. Vive-se a companhia do silêncio. O silêncio é a palavra não dita, e da palavra dita para si mesmo. É apenas a vontade de dizer. O silêncio é o inferno em que as almas ficam aprisionadas murmurando a sua dor inaudível. Ninguém escuta. O silêncio é o morto enforcado pelas palavras sufocadas.

É tarde. O rio Doce desapareceu na lama da Samarco. Grande desastre da humanidade. Tetricamente a lama espalhou a morte e a solidão da partida. Lugar-comum repetido pela trivialidade sensacionalista, em todas as vozes, em todas as palavras, em todas as línguas, rompendo o silêncio, que entristece. Calamidade: rompeu-se impunemente a barragem do Fundão. A vida rompeu-se. Só resta a ressurreição. Quando? É tarde. A resposta é um desafio a despertar nossa indignação, ainda que insignificante indignação. Só Deus criará um novo rio Doce. Ele que fez o mundo. E fez o rio Doce, destruído pela lama inclemente da Samarco. Choremos as lágrimas das impossibilidades da ressurreição da morte de uma obra divina, soterrada nesse abominável holocausto ambiental.

Ainda é tarde. A água, a cada dia, a cada minuto, a cada segundo, se transforma ao nosso redor em um bem em de extinção. Os rios morrem de morte matada, ou matados. Somos terroristas ecológicos. A tragédia hídrica está bem à frente. A floresta amazônica, o pulmão do mundo, desaparece consumida pelas labaredas dos impunes criminosos. A par disso, nas ruas, nos bares, nas lanchonetes, nas boates, nos cinemas, nos estádios, nas esquinas, nas tevês, há pedaços de corpos, trucidados por artefatos inumanos suicidas. Crianças assassinadas e estupradas. Almas em pedaços. Vidas em pedaços. Fé em pedaços. Morte em pedaços. O mundo em pedaços. E Deus sendo servido no altar dos modernos e midiáticos fariseus. É tarde. Precisamos despertar e juntar, tantinho por tantinho, todos esses pedaços, para recompor a nossa ânsia de viver como seres destinados à divindade. Porque, senão, tudo será tarde. 
* Membro da AML e AIL
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