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25/12/2021 às 00h00min - Atualizada em 25/12/2021 às 00h00min

MEMÓRIAS DA CASA DO ESTUDANTE

(Texto inédito, escrito para a minha crônica no Rádio/AM, adaptada para estes... CAMINHOS)

CLEMENTE VIEGAS

CLEMENTE VIEGAS

O Doutor CLEMENTE VIEGAS é advogado, jornalista, cronista e... interpreta e questiona o social.

 
De quando em vez me bate uma lembrança... uma saudade daquela minha CASA DO ESTUDANTE – uma planície onde a gente aprendia a ser e a viver. Por isso, hoje, eu busco esse reviver. A CASA DO ESTUDANTE, no Gavião, esquina de Vila Bessa, na capital – aquilo era o chão das igualdades, das liberdades e da democracia – um berço das nossas lutas e nossas buscas – quando a gente era feliz e não sabia.

E ninguém que pense que aquele coletivo era uma casa de mãe Joana ou uma “república sem lei”. Lá existiam regras e ordens e disciplina que eram feitas da tradição. Morei quatro anos por lá. E me faltou terra ao chão do dia em que saí de lá. Podes crer!

O Jaguar era o rei do baile, um crioulo alto bem dividido. Fazia o “partner” feminino, numa dança. A turma curtia o Jaguar. O JOTA-ZÊ, que tornou-se figura expoente do judiciário, estava sempre às voltas com a ZONA. “Liso”, sem dinheiro, vendia até os cadarços dos sapatos; O Carvalho lia os horóscopos vencidos da Revista Capricho. Tu aí bicho, qual é o teu signo? Dava tudo certo. A turma “gozava”, sorria. Pensava que era gozação do Carvalho. Depois eu fui ver, estava tudo lá na revista. Tornou-se empresário.

O Barbeirinho vendia bugigangas. Se deu bem. Cortava cabelos de uns e outros nos finais de semana. O Pelé vivia às voltas com amores de ocasião pelos becos escuros da vida. Serviu ao Exército era “enquadrado”. Altas horas quando chega da rua, engraxava  os sapatos, soprava-os até. Depois colocava-os dentro de sua mala. Tornou-se Oficial PM. O Chepeiro, de Rosário, soprava e abanava a colherada quente. A turma dizia: Oh! Costume de casa! Tornou-se servidor público, classe-A.
 
O ADONIAS, pobre de marré-marré como quase todos ali. Um dia resolveu avaliar as dimensões da cisterna, cheia de água, que servia àquele Batalhão. Antes, porém, Vitor – que se tornou Oficial PM, teve a brilhante e feliz ideia de amarrar um lençol mais outro lençol aos seus pés. Vendo que Adonias demorava, VITOR puxou o lençol. Adonias, no fundo d’água e perdido já estava em mãos lençóis. Olha o sufoco! Tornou-se um alto executivo de um uma empresa pública.

Tinha o Cleviegas que vivia discursando. Organizou até um CLUBE DE ORATÓRIA, um preparativo para as pessoas falarem em público, tudo coisa de amador. Tornou-se advogado e ainda se mete pelo jornal e pelo rádio. Tinha o Fontenele. Meteu-se a Coover de Caetano Veloso. Vivia cantando as músicas de Caetano. Foi apelidado de CAETANO SEBOSO. Depois teve que se explicar com o DOPS, a Polícia Política do Governo Militar, mas “pulou a fogueira”

Tinha o Ribeiro Grosso, metido a diretor da UMES. O apelido calçava-lhe justo como uma luva. Metido a autoridade, era uma figura isolada. Tornou-se médico. Tinha o TICO E O TECO, dois irmãos, tipo gêmeos, solidários e unidos, vestiam iguais. Costume de casa. Dividiam o ovo, a farinha, o pão e a banana. Tinha o SOPÃO, altão, um tipo “espanador da lua”. Guardava seus “de comer”, dentro da mala. Até hoje ninguém sabe o seu nome.  Tinha o Escravinho, com fama de BEM DOTADO. Empregado de farmácia. Cedo das manhãs ele batia numa chapa de ferro – BAM, BAM, BAM e dizia: “Acordem, escravos”. Seu grito se espalhava pela casa. Mas ninguém se aborrecia por isso, até porque todos ali – empregados ou não, levantavam-se cedo da manhã.

Tinha o Herbert. Metido a bonito, gostava de festas, e de pândega. Trabalha num banco. Era um novato. Por vezes o almoço atrasava, então Herbert pegava a bandeja de Aço + faca e garfo e EH BAIANA, ÊH ÊH E BAIANA (de Clara Nunes). Em princípio a turma estranhou, depois acompanhou. Tinham os moradores do POTE, o último apartamento do corredor. Eram veteranos, tipo o “estado maior da casa”. Nos finais de semana, por vezes, bebericavam suas pingas. E zombavam da turma da GERAL mas tudo brincadeira, porque na GERAL todos passaram por lá.

O Alves era empregado de relojoaria. Calmo, calado, boa praça. A turma fazia da sua cama gato e sapato. O Argemiro era um dos mais pobres entre os mais pobres. Arranjou um emprego público e não conhecia mais os pobres. O PC era de Matinha, era diretor e ecônomo da casa. Calmo, quieto, digno. Um exemplo de honradez, cidadania e responsabilidade. Tornou-se economista. Funcionário público de alto gabarito.

A casa do estudante era um berço de todas as esperanças e conquistas. Mas era também um ZOOLÓGICO, como os próprios moradores assim brincavam. Uns eram empregados, grande maioria desempregados. Uns que viviam no vai da valsa, outros na corda bamba e outros equilibrando-se no arame, e outros pulando a fogueira -  mas todos (absolutamente todos), cuidando da escolaridade, sem se descuidar do respeito, da honradez, da responsabilidade.

E quando dava dez, dez e mais da noite, a rapaziada vinha chegando de suas escolas, como em grupo ou seguidos, juntos, para o encerramento de um novo dia de jornada. Aquilo me transmitia um sentimento bom pelo prazer de ver todos ali em busca da conquista. O dia seguinte recomeçava no amanhecer quando muitos reuniam-se à beira da cisterna (lá em baixo), para o banho coletivo,

Aos domingos em grupos de dois a dois, três a três ou solitários como eu, íamos para a “janta” no BARZINHO DO SEU BAÚ, QUE FICAVA À BEIRA DO LARGO DO GAVIÃO, na capital. O jantar era um refresco com pão. Enquanto isso, também aos sábados ou domingos, um grupinho ficava lá fora no terraço contado piadas e aventuras de amores nas esquinas escuras. Escravinho, o bem dotado, e o Pelé (o mais famoso entre as empregadas dos patrões), eram os reis das aventuras. Contavam das suas que até hoje eu guardo na memória e sei de cor. Eu também tinha das minhas mas... ficava na minha. E de lembranças essas vou escrevendo esta PÁGINA SAUDADE daquela minha pranteada CASA DO ESTUDANTE.

 * Viegas questiona o social.
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