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23/11/2021 às 00h00min - Atualizada em 23/11/2021 às 00h00min

Depoimento Poético

O vendedor de ovo de égua - Causo XXVIII

JAURO GURGEL

JAURO GURGEL

JAURO José Studart GURGEL, durante muitos anos Editor Regional de O PROGRESSO, em Araguaína (TO),

*Republicado a pedidos
**Publicado originalmente em 8 de março de 2015

  
Em uma noitinha destas, estava eu a passar o tempo tomando uma cervejinha bem gelada no “Restaurante e Choperia Passatempo”, em Araguaína, acompanhado do meu amigo Marconi Barros, também confrade da ACALANTO – Academia de Letras de Araguaína e Norte Tocantinense, quando ele me contou uma historinha, dizendo que era uma piada que tinha escutado há muitos anos. Disse-me ele que em uma certa cidade do interior brasileiro, um rapaz acusado de crime de estupro estava sendo ouvido pelo juiz da comarca e, na referida audiência, entre tantos curiosos, estava um cidadão de uma idade já bastante avançada, que popularmente e carinhosamente chamamos de vovô, que a cada pergunta do juiz e posterior resposta do réu ficava a sorrir.

O juiz, ao estranhar aquele tipo de comportamento do curioso velhinho, não se conteve e pensando ser ele mais uma das testemunhas do acontecido, fez a clássica pergunta: “O senhor também foi arrolado?”, com o velhinho, levantando-se rapidamente da cadeira e, demonstrando uma certa insatisfação e até mesmo revolta, respondeu à autoridade máxima da justiça: “Que que isto, doutor?! Eu não! A moça é que foi arrolada! Foi ela quem levou rola!”.

Como conheço muito o bem o Marconi Barros, um homem sério, um cidadão acima de qualquer suspeita, marido e pai exemplar, gerente de contas de uma das três agências do Banco do Brasil em Araguaína, bacharel em Direito, poeta, escritor e outras qualidades mais, tenho a certeza quase que absoluta que o que me foi contado não foi uma simples piada, mas sim um fato verídico, quem sabe acontecido na sua querida cidade de Picos, no interior piauiense, e na qual ele se orgulha de ter nascido.

E ao ouvir aquela história, que repito acredito ser verdadeira, me veio à mente uma outra acontecida na minha querida cidade de Acaraú, não podendo eu precisar o ano, mas garanto ter sido entre 1965 e 1970, e no mês de julho. A afirmação convicta de que foi em julho se deve ao fato de ser naquele mês que eu ia passar as férias em Acaraú, que quando tal aconteceu, eu estava de férias, presenciando tudo nos seus mínimos detalhes.

No município de Acaraú, existe um distrito próximo à sede, de nome Aranay (antiga Timbauba), bastante conhecido em todo o Ceará pela grande quantidade de tatu. Também no Acaraú, isto é, na cidade, morava uma destas personagens folclóricas conhecida popularmente pelo nome de “Joca”, um verdadeiro talento no repente, e que tudo o que falava era em forma de rimas. “Como vai, Joca?”, perguntávamos, e ele respondia: “Vou muito bem, sem dever nada a ninguém!”, era a resposta. Ou então respondia: “Vou muito bem, obrigado! Ouvindo muito e ficando calado!”. E assim por diante.

O Joca não era acarauense. Apareceu na cidade tão de repente como de repente se familiarizou com a sociedade acarauense, tornando-se uma pessoa bastante querida por todos. Quando o perguntávamos o que ele tinha ido fazer em Acaraú e o porquê de lá ter ficado definitivamente, ele dizia (sempre em versos, mas não recordo nenhum deles) que sua mulher tinha mandado ele comprar uns cigarros e, como ele não encontrou o cigarro pedido e com medo de apanhar da esposa, que era muito brava, ele resolveu não voltar mais para casa.

Antes de narrar o “causo” tema de agora, vou fazer um pequeno parêntese para contar uma façanha do Joca. Tinha no Acaraú um delegado bastante valente, que não admitia a menor brincadeira nas noites acarauenses, chegando ao cúmulo do absurdo de proibir as apaixonadas serenatas. Uma noite, eu e outros colegas, que também estavam de férias em Acaraú, prometemos ao Joca vários “brindes” se ele tivesse a coragem de chegar à noite na porta da casa do delegado, batesse e quando o delegado perguntasse o que queria, ele tratasse mal aquela autoridade policial. Na hora do combinado, ficamos eu e os colegas escondidos atrás de uma árvore, em frente ao sobrado (casa de dois andares) do delegado, quando o Joca chegou com uma destas latinhas de doce, vazia. Sentou-se em frente à porta da casa do delegado e começou a fazer zoada. O delegado abriu a janela do sobrado, olhou para baixo e gritou bem alto para o Joca: “O que é?”, e tranquilamente o Joca começou a mexer com um dos dedos na latinha, dizendo: “Nada, filho duma égua!”, e repetiu mais umas duas ou três vezes.

O delegado fechou a janela, e nós começamos a tremer de medo, diante da tragédia que estava para acontecer. Passados uns cinco minutos, sem que o delegado aparecesse na rua para tomar as providências que imaginávamos, devagarinho nos aproximamos do Joca, que continuava sentado na porta da casa. Lá chegando, ficamos surpresos com a sua inteligência: a latinha de doce estava cheia de água e dentro dela um peixinho. Quando o delegado perguntou o que era, o Joca simplesmente ficou a cutucar o peixinho, ordenando: “Nada, filho duma égua!”. Resultado: tivemos que pagar ao Joca tudo o que lhe prometemos.

Mas voltemos ao “causo” do Depoimento Poético. Na época do acontecido (repito: no mês de julho de 1965 a 1970), a comarca de Acaraú tinha à frente um brilhante e justíssimo juiz chamado “Doutor Girão”, e em uma certa tarde iria ter uma audiência sobre violência sexual. Como eu sempre fui muito curioso, pedi a autorização do juiz para assistir à tal audiência e me sendo concedida, na hora marcada lá estava eu sentado em um tamborete, ao lado da mesa onde estavam o Dr. Girão, o escrivão (com sua máquina de escrever) e os dois jovens: ela jurando por todos os santos que tinha sido estuprada; ele negando veementemente qualquer tipo de violência. Fez... não fez... fez... não fez... E como era a palavra de um contra a palavra de outro, o juiz perguntou à jovem se havia alguma testemunha, se alguma pessoa tinha visto, presenciado a cena. A jovem respondeu ao juiz que na hora do acontecido observou que o Joca tinha passado perto e, como tal, deveria ter visto alguma coisa.

De imediato, o Dr. Girão suspendeu a audiência, chamou um soldado que estava na porta do cartório e pediu que ele procurasse pelo Joca, que por certo deveria estar no Mercado Público, a uns cem metros do cartório. Não demorou muito e eis que chega de volta o soldado, trazendo o Joca em sua companhia. O juiz explicou ao Joca o porquê de ele estar ali, e após o juramento sobre a Bíblia, perguntou-lhe: “Senhor Joca, o que o senhor tem a dizer sobre este caso?”.

Joca deu um pigarro e, como sempre respondia em forma de poesia, recitou estes versos, com certeza, de improviso:

“Senhor Juiz/ Eu vinha do Aranau / De uma caçada de tatu / Vi alguém bater / Alguém gemer / assim um modo de fuder / Me aproximei / Vi brancas coxas / Negros cus / Pencas de grão / Pica não. / Por favor, seu escrivão / Diga para o Doutor Girão / Se estavam fudendo ou não!”.

E foi nesta hora que o Dr. Girão revelou também a sua veia poética: deu uma batida na mesa e acrescentou: “Soldado / Leve o Joca pra prisão!”.
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