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26/10/2021 às 00h00min - Atualizada em 26/10/2021 às 00h00min

A Beata do Ônibus

O vendedor de ovo de égua - Causo XX

JAURO GURGEL

JAURO GURGEL

JAURO José Studart GURGEL, durante muitos anos Editor Regional de O PROGRESSO, em Araguaína (TO),

*Republicado a pedidos
**Publicado originalmente em 4 de Janeiro de 2015

  
A estória agora narrada não me foi contada por nenhum mortal, mas testemunhada por mim, ao vivo e em cores, e como diria o filósofo Zedis Krent, “vista por esta dupla de dois olhos que um dia a terra vai comer!”. Este fato aconteceu logo no comecinho da década de oitenta, quando eu cheguei em Araguaína, vindo do meu Ceará, e ministrava aulas de Literatura Brasileira e História do Brasil no hoje saudoso Colégio Integrado de Araguaína. E como já frisei em “causos” anteriores, o CIA marcou a história educacional de Araguaína e região norte-goiana, quando os seus alunos tão logo concluíam o segundo grau, conquistavam o maior sucesso nos vestibulares das mais diversas universidades espalhadas por todo o território brasileiro.

Na época do acontecido agora narrado, Araguaína era completamente diferente do que é hoje. A Avenida Prefeito João de Sousa Lima ainda era conhecida como “Pão de Açúcar”, seu primeiro nome, embora oficialmente já se chamasse de Avenida Coronel Melo Cunha. Em todo o trecho da avenida, da Praça das Bandeiras até a Feirinha, era poeirão na época de verão e lamaçal na época do inverno, e o tal asfalto não passava de um sonho. Um dos pontos de atração da avenida era uma capelinha, conhecida como “Igreja do Tem Tem”, onde hoje existe o belíssimo Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Morava eu com a minha esposa naquela avenida, em uma casa onde atualmente funciona a sede própria da autoescola Dona Virgínia, e um dos meus divertimentos preferidos era ficar sentado na calçada da casa, observando os poucos veículos automotores e os animais que passavam para lá e para cá. Lembro-me bem do dia em que um veado passou correndo e quis entrar em minha residência. Foi um acontecimento marcante, valendo ressaltar que a anormalidade do fato foi por tratar-se de um veado de quatro patas, pois passar na minha rua veado de dois pés era um fato mais que normal.

Araguaína possuía uma população flutuante, ou seja, formada por pessoas que vinham para cá com o objetivo único e exclusivo de ganhar dinheiro, e isto acontecendo, ficando totalmente ricas, voltavam para as suas terras de origem. Assim sendo, a cidade não possuía uma tradição, uma história, a sua memória não era resgatada e a sua cultura praticamente desprezada. A preocupação geral de uma expressiva parte da população era ganhar dinheiro, na conhecida nacionalmente capital do boi gordo. Gostaria de lembrar a você, meu querido e prezado leitor, que na época o município tinha uma extensa área territorial, área esta que foi dilacerada em 1992, quando os distritos de “Pé do Morro”, atual Aragominas; Araguanã, Cachorro de Cócoras, atual Carmolândia; Muricilândia e Santa Fé do Araguaia, conquistaram a sua emancipação política.

Talvez devido a esta população flutuante, a ambição pelo poder e a falta de amor à terra que tão bem acolheu a todos, Araguaína poderia ser considerada uma cidade bastante violenta, aqui acontecendo crimes bárbaros e monstruosos, capazes de deixar careca de cabelo em pé. Tivemos o caso de uma mãe e 7 filhos menores que foram barbaramente assassinados em uma fazenda, próxima à cidade, e cujos oito corpos estão sepultados juntinhos no Cemitério Municipal São Lázaro. Tivemos o assassinato do então prefeito João de Sousa Lima; tivemos a tentativa de homicídio ao então vereador Edmundo Galdino, hoje paraplégico; tivemos o assassinato de um jovem no interior da Panificadora Modelo, onde hoje funciona a Max Pão; enfim, morar em Araguaína era uma verdadeira arte. Eu mesmo, por duas vezes, estive em perigo, ameaçado de morte por alunos.

Um certo dia, estando eu a visitar o Conjunto Habitacional Vila Couto Magalhães, que por ter sido recém-invadido era popularmente chamado de “Malvinas” (à época, Inglaterra e Argentina estavam em guerra pela posse das Ilhas Malvinas), ao voltar para o recesso do meu lar, e como ainda não possuía um carro próprio, peguei um transporte coletivo da “VIAÇÃO LONTRA”, que já na época prestava relevantes serviços à comunidade araguainense, transportando, como aliás ainda transporta, com rapidez, segurança, comodidade e pontualidade, os seus usuários.

Sentei-me em um dos bancos do ônibus e observei que ao meu lado estava uma jovem bastante simpática, morena de aproximadamente 18 anos e que tinha uma particularidade: a todo instante ela fazia o sinal da cruz. Era impressionante a frequência com que a jovem fazia aquele sinal, não estando a cometer nenhum exagero ao afirmar que era de dois em dois minutos.

Comentei baixinho comigo mesmo que aquela jovem deveria estar com medo, insegura ante a viagem, e que desta forma ficava a todo instante a pedir a proteção divina. Até que não me contive e tentei uma prosa com a jovem, iniciando com o seguinte comentário: “Você é muito religiosa! Parabenizo-lhe por tanta fé em Deus”.

Ela olhou para mim um tanto quanto desconfiada e me perguntou por que eu afirmava aquilo, e ao lhe responder que era devido ao sinal da cruz que ela fazia a todo instante, a jovem simplesmente sorriu e disse que eu estava redondamente enganado. “Eu não estou fazendo o sinal da cruz”, garantiu.

“Não!?”, pensei surpreso e ousei questionar: “Então, qual o significado destes gestos?”, e a imitei fazendo os mesmos sinais.

Ela tornou a sorrir e me revelou que estava indo até a Feirinha fazer algumas compras para a sua patroa, e como era muito esquecida, fazia aqueles gestos para lembrar o que iria comprar.

Surpreendi-me com o esclarecimento e lhe fiz uma nova pergunta: “E o que você vai comprar lá na Feirinha?”.

E a jovem, repetindo o gesto, talvez pela milésima vez, afirmou: “Um coco, dois litros de leite e um pacote de Bombril!”.

 
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