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02/10/2021 às 00h00min - Atualizada em 02/10/2021 às 00h00min

​Pedaços de leitura

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Acordei cedo. O dia ainda nublado. Uma aragem ainda fria passava pela fresta da janela e alcançava a minha face. Esquivei-me o quanto pude. Não consegui livrar-me do seu leve importuno gélido roçar. Voltei a estirar-me, ainda bocejando, no lado quente da cama. Ao longe, chegou aos meus ouvidos semi-acordados o canto insistente do bem-te-vi. Parecia um coro repetitivo: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi. Assaltou-me a convicção de que estava nesta nossa Ilha do Amor. Embora estremunhado pela preguiça, voltei à janela, abri alguns precavidos centímetros e olhei. Vi dezenas de prédios cercados por grossas nuvens, como se desejassem despejar sobre nós seus pesados pingos d’água. Por isso, pensei, aquele friozinho a impor uma preguiça modorrenta. Persistia o canto repetido desse pássaro das ruas, dos telhados e dos fios elétricos de nossa poética São Luís, o qual todos os dias, no raiar do sol, realiza a sinfonia para nos despertar do descanso de uma boa noite de sono. Mas não foi bem assim. Tenho uma certeza duvidosa de que esse bem-te-vi é a voz viva de um canto que está cumprindo a missão poética de chamar-me para retornar à terra de todos os nossos amores; esta São Luís, com sol, vento, uma brisa acariciante e uma chuvinha passageira, que elimina o calor do mormaço.

Aceitei o convite desse anônimo bem-te-vi. Estou chegando. Mas antes, passei uma vista d’olhos nos jornais. Constatei que os impressos estão sendo bem vendidos nas bancas desta apressada cidade. Por umas duas ou três vezes, saí para comprar, e a resposta do vendedor fora de que não havia jornais. Ainda bem. O leitor não perdeu o hábito de conhecer os fatos e as opiniões dos cronistas, ainda leem os nossos diários. A par disso, percebe-se que as bancas (antes chamadas de bancas de jornais) estão diversificando os seus produtos. Vendem de tudo um pouco. O jornal é apenas um desses produtos.

Nesse tempo do despertar pelo canto do bem-te-vi, fiz leituras rápidas e descomprometidas dos jornais. De cada um tirei um pedaço: ora uma notícia agradável, ora nem tão agradável. Vim saber da morte do dramaturgo Sérgio Mamberti, um artista de ativa militância cultural, com atuação tanto no teatro como na televisão, tendo participado de 36 filmes, 36 novelas e 80 peças de teatro, entre as quais O Balcão, montada em 1969, em que interpretou com brilhantismo o personagem Juiz, recebendo o prêmio Governador do Estado de São Paulo. Os jornais também lembraram o que é considerado o maior atentado terrorista da história, o ataque às Torres Gêmeas, ocorrido em 11 de setembro de 2001. Vinte anos passados dessa tragédia, que originaram outras tantas tragédias, cuja resposta foi a deflagração da guerra contra o terror, culminando na invasão do Iraque, sob a falsa justificativa da existência de armas de destruição em massa, tudo isso com uma enorme perda de vidas humanas.

Nesses pedaços de leitura, deparei-me com o conhecidíssimo, de tantos outros carnavais, economista e ex-presidente do Banco Central (1999-2002), Armínio Fraga, sócio fundador da Gávea Investimentos, portanto homem de mercado, que, numa edição da Folha de São Paulo, de 11 de setembro de 2021, diz cobras e lagartas do capitão reformada do Planalto. Perguntado sobre o termo fera ferida, com o qual rotulou o capitão, respondeu: “Hoje fica difícil negar que ele tem uma estratégia, claramente. Não é boa, nem a que a gente precisa, mas ele tem. Isso se depreende não tanto do discurso, que é agressivo e tosco, mas da prática. Essa estratégia está dando errado e muito perigosa. E o mercado, de certa maneira, responde a isso.” Numa outra entrevista dada ao Estadão (edição de 15/9/2021), o mercado, na voz desse economista e ex-presidente do Banco Central, afirmou que o Brasil, a nossa pátria amada, está em situação pré-falimentar; ou seja, na verdade, quis dizer que do que jeito que as coisas estão indo, está quase falido. O mercado se enganou. Mas, ora, ora, a não menos conhecidíssima Helena Landau, ex-diretora do BNDES, que faz do grupo Derrubando Muros, vem pregando a união de todos (empresários, banqueiros, políticos, economistas etc.) para combater o capitão-presidente, com anseios de ditador. Esse grupo de neo-inconformados busca uma terceira via, por não aceitar a escolha democrática de Lula. Mas, a Dra. Elena (sem “h”), ao ser perguntada sobre como avaliaria Paulo Guedes, o guru da economia da nossa pátria pré-falida, disse que “é a mesma avaliação de sempre, de 30 anos atrás, 2018 e hoje. Ele é uma pessoa completamente inábil e sem nenhuma noção da realidade. É um economista de palestra. Nada do que está acontecendo me surpreendeu.” E aí, como sair da quase falência? Segundo o Sr. Guedes, privatizando tudo: da mata amazônica ao rio Tietê.

Como se vê, nem os mais otimistas não estão conseguindo esconder o pessimismo desse momento histórico. Sobretudo porque, em outro pedaço de leitura, a trans Luana Emanuelle, com 18 anos de idade, se viu agredida em casa pelo pai, por ela ter resistido a uma tentativa de estupro. A dúvida atroz: Luana é uma mulher transexual, assim terá a proteção da Lei Maria da Penha? O TJ de SP negou a proteção. Luana trans recorreu. Aguarda a definição no STJ. As mulheres trans ficarão na expectativa. O STJ, sem que eu seja vidente, deve unificar o entendimento, estendendo a aplicação da Lei Maria da Penha. Antes que o bem-te-vi volte a cantar, aguardemos o resultado dessa peleja jurídica.
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