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04/09/2021 às 00h00min - Atualizada em 04/09/2021 às 00h00min

A Travessia do Rubicão

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão, e membro da AML e AIL - [email protected]

 
Não é minha intenção dogmatizar este meu texto. A bem da verdade, ia tratar de um tema que nada tem a ver com Rubicão. A conversa giraria em torno do crime e da pena. E então falaria sobre o sistema jurídico das sociedades civilizadas, que, quando praticado o crime, o autor do delito é processado, tendo o direito de exercer amplamente a sua defesa e, se for condenado, receberá uma pena, que tem um sentido retributivo, intimidativo e a finalidade, falidamente, ressocializadora. E por que falidamente ressocializadora? Porque a pena privativa de liberdade, quando aplicada, ainda que nos crimes mais graves, é apenas um mal necessário, de defesa da sociedade e que, quando não torna o delinqüente mais delinqüente, não lhe serve de profilaxia no seu âmago criminoso; ao contrário, contribui, ainda mais, para sua degeneração moral. Falo desses condenados corriqueiros e comuns, que representam o lado mais desamparado e desigual de nossa sociedade. Da grande parcela de encarcerados não faz parte os delinqüentes que vivem em mansões de três, quatro, cinco ou dez milhões ou mais de reais ou dólares. Refiro-me ao infrator pé-de-chinelo, apenado pela prática delitiva continuada. Esses são os ratos de esgoto, vítimas de uma sociedade extremamente desigual, cuja criminalidade é visível, como o cenário que nos é mostrado todo dia, na famosa e nada hospitaleira Cracolândia, onde o comércio de crack faz parte do desajustado cotidiano, a enriquecer os tubarões do tráfico, sem que o poder público faça nada para sequer amenizar essa miséria visual.

E, embora a Constituição Federal diga no inciso XLVII, letra “e”, do art. 5º, que, no Brasil, não haverá penas cruéis, a Cracolândia responde que há. Aquelas pessoas(?!?) andrajosas, sujas, famintas, drogadas, vítimas de uma infame desigualdade e falta de solidariedade, estão lá homiziadas a céu aberto num gueto, a cumprir sem processo, uma pena cruel, sofrendo, sem nenhuma chance de exercer a sua defesa social.

Pena cruel: é a chocante verdade. Mas há uma certeza – certeza devastadora – de que, se Cristo se fizer outra vez presente, vontando para nosso convívio, o primeiro lugar do Brasil que o Filho de Deus visitaria, para fazer a partilha do pão no banquete da solidariedade, era a Cracolândia. Não iria ao Planalto, porque lá encontraria algum fariseu, conhecedor de todas as leis do Antigo e Novo Testamento e, quem sabe, mais alguém travestido de Pilatos, que lavaria as mãos para proteger os interesses do empreendedor, do latifundiário e dos banqueiros.

Ainda bem que, no meio de todas essas insanas crueldades, aparece um Catão, não tão Moço, célebre pela sua luta contra a tirania despótica de César, que, vestindo a toga da Justiça, verberou pela voz do Ministro Ricardo Lewandowski: “INTERVENÇÃO ARMADA: CRIME INAFIANÇÁVEL E IMPRESCRITÍVEL Na Roma antiga existia uma lei segundo a qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio Rubicão, que demarcava ao norte a fronteira com a província da Gália, hoje correspondente aos territórios da França, Bélgica, Suíça e de partes da Alemanha e da Itália. Em 49 a.C., o general romano Júlio César (...), ao término de demorada campanha transpôs o referido curso d’água à frente das legiões que comandava, pronunciando a célebre frase: ‘A sorte está lançada.’ A ousadia do gesto pegou seus concidadãos de surpresa, permitindo que Júlio César empalmasse o poder político, instaurando uma ditadura. Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. O episódio revela, com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores. No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que ‘constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático’. O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, ‘impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais’. Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como ‘tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído’. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência. (...) E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a ‘defesa da lei e da ordem’, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes. A propósito, o Código Penal Militar estabelece, no artigo 38, parágrafo 2º, que ‘se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior’. (...) Como se vê, pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o Rubicão.” Sem ser Catão, apenas vestido com toga da legalidade, eu digo: cabe prisão em flagrante.

* Membro da AML e AIL
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