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07/08/2021 às 00h00min - Atualizada em 07/08/2021 às 00h00min

Como dantes no quartel de Abrantes

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

 
Um pouco de história, cujo relato foi retirado de um texto do poeta, escritor e advogado José Cândido Póvoa, publicado em 23 de maio de 2017, no site Diário da Manhã (dm.com.br). Conta-nos o escritor e poeta que a frase-título deste artigo (quase a mesma que o poeta Cândido Póvoa usou para o seu texto: “Está tudo como dantes no quartel de Abranrtes), “surgiu no início do século 19, com a invasão de Napoleão Bonaparte à Península Ibérica. Portugal foi tomado pelas forças francesas, porque havia demorado a obedecer ao Bloqueio Continental, imposto por Napoleão, que obrigava o fechamento dos portos a qualquer navio inglês. Em 1807, uma das primeiras cidades a serem invadidas pelo general Jean Androche Junot, braço-direito de Napoleão, foi Abrantes, a 152 quilômetros de Lisboa, na margem do rio Tejo. Lá instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes. O general encontrou o país praticamente sem governo, já que o príncipe-regente dom João VI e toda a corte portuguesa haviam fugido para o Brasil. Durante a invasão, ninguém em Portugal ousou se opor ao duque. A tranquilidade com que ele se mantinha no poder provocou o dito irônico. A quem perguntasse como iam as coisas, a resposta era sempre a mesma: ‘Está tudo como dantes no quartel d’Abrantes’. Até hoje se usa a frase para indicar que nada mudou. Ao reescrever um artigo que há muito produzi, alimentava a esperança que um dia pudesse refazê-lo de outra forma, pois tinha a convicção de que o tempo e os homens púbicos se encarregariam de dar outros rumos ao nosso País.”

Isso tudo é história. Essa frase que atravessou os séculos é história; e faz parte também da nossa história. O que mudou? Muita coisa. Ainda assim, avançamos e retrocedemos, razão pela qual me lembrei dessa célebre frase, que nos faz companhia durante todos esses anos de idas e vindas.

O nosso sistema de votação já foi o mais espúrio que se possa imaginar. O voto não era secreto (vigorou na prática durante anos assim); era de cabresto. O eleitor, antes de ir à urna, saía da senzala, passava pela casa-grande, recebia a cédula e votava em nome do candidato do coronel. Lutou-se muito para mudar essa prática criminosa que afrontava a liberdade. O procedimento foi, aos poucos, sendo alterado, e, com avanço à frente dos países mais desenvolvidos, demos a eles um exemplo de democracia e chegamos ao voto eletrônico, em que a possibilidade de fraude é zero. E não direi quase zero. É zero mesmo. O eleitor e a eleitora não mais receberão a cédula votada. Têm a responsabilidade cívica de ir para urna, influenciado ou não por quaisquer circunstâncias, sabendo em quem escolherá para ser seu representante no parlamento, ou quem governará o Estado, o Município ou o País. Uma escolha livre das influências nefastas de milícias, a serviço de candidatos que fazem da eleição um processo de investimento para, no exercício do mandato, tirar vantagens escusas, aproveitando-se das carências do eleitor ou eleitora e traindo – porque compraram os votos – as propostas que fraudulentamente fez a quem os escolheu.
Voltar ao passado. Não. Não devemos aceitar pacificamente a volta ao e do passado, a não ser que seja inovador, trazendo consigo valores cívicos que se coadunem com a ética do bom viver.

Lebremo-nos que, no passado, a empresa-empregadora fazia o pagamento do salário do empregado com dinheiro vivo. Final do mês ou final da semana, o empregado passava pelo caixa e recebia o envelope com a discriminação dos valores de todos os pagamentos: salário, horas e dias trabalhados, horas extras, descontos previdenciários e dos dias não trabalhados e não justificados. Contava o dinheiro dentro do envelope – cédulas e moedas. Assinava o recibo. Metia o envelope no bolso e ia para casa pagar as contas do mês ou semana, penduradas no caderno de algum quitandeiro ou de um comerciante amigo. Isso tudo ocorria na época que a nossa moeda era o cruzeiro. O real foi um outro momento. Já vivíamos a era dos bancos, tendo sido criadas as contas-salário, onde o pagamento é depositado.  

Hoje, estamos a viver outro momento histórico. E queremos retornar ao que fora antes? À época recente do cheque, ora em fase do estertor final, quando outros meios de pagamentos estão facilitando a vida de muita gente. Nessa pandemia, as obrigações pecuniárias foram realizadas por aparelhos celulares, com absoluto êxito.

Meu avô, que exercia a profissão de carroceiro, ora em extinção, mas à época ainda sustentável, deu-me muitas vezes, para fazer compras na quitanda do Seu Gonçalo, alguns tostões. Eram suficientes para comprar uns não-me-toques, ou qualquer guloseima. Um tostão, dois tostões, cinco tostões, dez tostões, dificilmente um cruzeiro, que representava uma quantia proibida para crianças, ainda mais de família menos abastada.

Muitos sonham com a volta ao passado. Não se conformam com o presente e muito menos com os novos ares do futuro. São pessoas empedernidas com o atraso, a viverem com os seus antivalores, a repudiarem os valores éticos de uma nova sociedade. O tostão já morreu com o passado. O cheque está no estertor. Os empregados não mais recebem o salário em envelopes. E o voto, numa democracia que quer ser contemporânea, sem a influência perniciosa da força bruta do antigo coronel, é efetivada em urna eletrônica, que não padece dos vícios do voto impresso. Pensar de forma diferente é querer o passado que já morreu e não pode mais voltar. Sobretudo quando a justificativa é falaciosa. Parodiando Machado de Assis, digo: não mudou o Brasil, ou nós é que não mudaremos?

* Membro da AML e AIL
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