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22/08/2020 às 07h14min - Atualizada em 22/08/2020 às 07h14min

Meu Hoje

AURELIANO NETO

AURELIANO NETO

Doutor Manoel AURELIANO Ferreira NETO é magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Maranhão.

Todos nós temos um hoje. Que começa ao despertar do sono. Houve uma época em que o meu hoje era pela metade, considerando para isso a perspectiva do dia, com sol ou chuva. Trabalhava à noite e tentava viver durante o dia. Qual seria o hoje dessas pessoas excêntricas que resolvem, por conta de um ato de grande amor, ou um equívoco amoroso, vir a mundo? Como será o hoje de um desses seres humanos que são considerados invisíveis, pois não integram a estatística da mais rudimentar pesquisa, por serem “moradores” de rua? Com sol, sem sol, com chuva ou sem chuva, com frio ou calor, como é o hoje dessa gente que não tem sequer o aconchego de um reles e fortuito olhar? E o hoje desses agiotas oficiais, donos dos mais portentosos conglomerados financeiros, que atravessam a Avenida Paulista nos seus helicópteros, sem sequer olhar para os daqui de baixo? E o do desempregado, também desamparado social, que carece de R$ 600,00 para esquecer a sua fome e dizer, elevando as mãos aos céus, que tudo está bom e que o governo é generoso? Não tenho resposta para todas essas instigantes indagações, até porque ensinam os teólogos que o nosso hoje não se completa se apenas amarmos a Deus, com toda a nossa força e todo o nosso coração, mas quando nós amamos o próximo. Aí está a solução que nos desafia a enfrentá-la. Amar ao próximo como o único caminho de se amar a Deus. De outro modo, somos como os fariseus, meros seguidores de mandamentos que nos tornam puros à vista de todos e cegos que só veem a aparência.

E o meu hoje? Amanheci fazendo a leitura do evangelho, para melhor compreender as coisas do mundo. Jesus respondia aos fariseus sobre os mandamentos mais importantes. Esses escribas, que criaram milhares de leis, para atazanar a vida dos incautos, ao fazerem essa pergunta, estavam a provocar Cristo. E mestre de todos nós simplificou tudo: amar a Deus, o Pai, e ao próximo como a si mesmo. Pronto. Acabou a confusão. Só que cumprir esses mandamentos é de uma complicação tão grande, sobretudo porque, para chegar ao primeiro, tem que se cumprir fielmente o segundo. E aí é que está o nó da questão. Mas... curioso, segui adiante e encontrei esta lição do teólogo: “Há mil maneiras de amar o próximo, mas uma só maneira de amar a Deus: amando o próximo.” Com esta lição, meu hoje começou.

Segundo esse ditame, iniciei o dia amando o próximo. Como? Não fui à rua ver os invisíveis. Lido com essas pessoas, quase todos os dias. É a minha missão como magistrado fazer justiça. E o fazer justiça não é só aplicar a lei. Não. Como diria Machado de Assis: a verdade é essa, sem ser bem essa. Se fazer justiça se reduzisse a apenas aplicar a lei, o Judiciário brasileiro e do mundo não precisaria de juízes ou juízas de carne e osso e uma mente pensante, mas tão somente de robôs, o que já vem sendo utilizado em alguns lugares do mundo e nesta nossa pátria amada. É a pura verdade, embora a verdade nem sempre seja a verdade. O uso da inteligência artificial está cada vez mais presente. Chegar-se-á a um dia, enfim um hoje desses quaisquer, que o ser humano será dispensado, por ser supérfluo ou invisível.

Ainda assim, com todos esses conflitos íntimos, o meu hoje prosseguiu exalando amor. Passei, antes de pegar no pesado do exame dos recursos judiciais, para sanar as atrocidades de que são vítimas cotidianamente os nossos consumidores, a ouvir uma dessas canções que nos despertam para a vida: Carolina, de Chico Buarque, na voz da Divina Elizeth Cardoso. Aí vieram esses poéticos versos do filho de Sérgio Buarque, o autor de Raízes do Brasil, que costumava dizer que era o pai de Chico: Carolina / Os teus olhos fundos / Guarda tanta dor / A dor de todo esse mundo (...) Lá fora, amor / Uma rosa morreu / Uma festa acabou / Nosso barco partiu / E eu bem que mostrei a ela / O tempo passou na janela / Mas Carolina não viu. A partir desse lirismo eterno que Chico tem o poder de captar desse nosso contraditório mundo, o meu hoje me despertou para um dia celestial, humanizado, porquanto a poesia tem essa grande força de nos tornar seres humanos, em todas as suas dimensões, carnais e espirituais, e iguais aos visíveis ou aos invisíveis.

E o seu hoje, como está sendo? A sua preocupação consigo mesmo extrapola essas fronteiras individuais para chegar ao outro, que se encontra na outra margem? Cada um tem a sua resposta.

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